“A Vida Vai Melhorar”: Ascensão frustrada
Filme do diretor francês Cédric Khan trata das armadilhas do capitalismo e da relação amorosa de um francês e com uma libanesa
Publicado 24/08/2012 13:19
A arte, no caso o cinema, refletindo sobre a mundialização do capital. Os deslocamentos se multiplicam, abrangendo países e continentes, mas a cada opção as dificuldades se tornam insuperáveis. O francês Cédric Khan trata em “A Vida Vai Melhorar”, exibido no Festival Varilux de Cinema Francês 2012, justamente disto: as barreiras impostas pelo capital para impedir a ascensão social. Embora se fale muito hoje em empreendedorismo, a mudança de classe, tão apregoada pela burguesia, tornou-se praticamente impossível.
Khan estrutura sua história pondo estas questões com clareza. Estreitou-se o espaço para o empregado libertar-se das garras cotidianas do patrão. Cada etapa percorrida pelo cozinheiro Yann Laurent (Guillaume Canet) com sua companheira libanesa, a garçonete Nadia Gorani (Leila Bekhti), para montar seu próprio restaurante mostra isto. Do banco que lhes empresta o dinheiro à agência de fiscalização do governo, passando pela artimanha para quitar a parcela inicial, as exigências são tantas que se tornam um labiríntico cipoal.
Quando eles conseguem superar estas fases outros problemas expõem o despreparo deles. E, assim, o sonho torna-se um pesadelo, onde todas as portas se abrem para a câmera de tortura. O mundo dos negócios não comporta amadorismo, por melhores intenções que eles tenham. Então, a aridez domina a narrativa. O empreendimento que deveria dar certo esbarra na burocracia, na carência de capital adicional, na ausência de projeto prévio, na pesquisa do volume de negócios e no prazo de retorno do investido, para depois assumir dívida de $ 240 mil euros.
Khan, desta forma, torna seu filme o outro vértice dos empreendedores de Mara Mourão em seu documentário “Quem se Importa”. Enquanto neste só havia otimismo, Khan é mais realista, como se vê. A mundialização do capitalismo, para tomar emprestado o termo do geógrafo brasileiro Milton Santos, criou, por outro lado, a super-especialização: cada ramo de negócio tem seus caros especialistas. Eles retiram o que resta a Yann até deixá-lo no fim do poço. Inclusive agiotas e a máfia francesa.
Relacionamento entre iguais
Khan, a partir de um fato corriqueiro, vai escalando a estrutura do capital financeiro. E não se prende a apenas este fio central, estende-se a outros não menos importantes: 1 – A relação de Yann com Nadia, mãe de Slimane, de nove anos; 2 – a relação de Yann com o garoto; 3 – a culminação da epopéia de ambos, no Canadá, numa situação limite. Yann e Nadia não se relacionam como francês e libanesa, com tudo que isto implica, sim como duas pessoas que se amam e têm que escapar ao que os aprisionou. Ela, longe de ser submissa, sai à procura de solução. Yann fica com Slimane e os credores.
Yann tem no garoto, a um só tempo, seu impasse e sua maturidade. Instintivo, fez Nadia mergulhar no negócio. Sua purgação é cuidar de Slimane. Torna-se “pai” do garoto, tendo obrigações com Nadia e o Estado, via escola e agência de assistência social. O espectador já viu esta relação conflituosa em vários filmes, Khan quase se perde nela. É o fio central, da derrocada do negócio, que o evita. O menino, no entanto, é o elo que o mantém ligado a Nadia. É também o que os faz uma família, multiétnica, sem preconceito.
Não se trata aqui da solidariedade vista em outros filmes: “Bem-vindo”, do também francês Philippe Lioret, e “O Farol”, do finlandês Aki Kaurismäki, Khan expõe a relação Yann/Slimane este como o filho a que Yann custa aceitar, pela carga que o garoto representa para ele, endividado e sem perspectivas. Ele e Nadia são iguais, respeitam as diferenças culturais. Este olhar do cinema sobre o outro, o diferente, eleva seu filme a outro patamar: o da superação do preconceito e a abertura para a igualdade com o diverso, o estigmatizado.
Esta abordagem foge à imposição político-ideológica da produção hollywoodiana de sempre identificar a ameaça. Dar-lhe rosto, projeto e ação. De sustentar a visão imperialista dos EUA via produção audiovisual. De pôr árabe, muçulmano, latino-americano, leste-europeu, como vilão. Quando obras, como as citadas e, em particular, este “A Vida Vai Melhorar”, não se alinham a esta política abrem espaço para filmes desmistificadores. Na terceira parte, a que sedimenta a relação Yann/Nadia, Khan centra-se na realidade: a da emigrante que, sem saída, é usada pelo tráfico de drogas, e a do emigrante que se vale de sua formação para fugir ao desemprego e constrói nova vida.
Khan termina por transformar sua obra numa epopéia dos tempos da mundialização. Não há o herói propriamente dito – é mais vítima, reage mais que age. É um cidadão comum. Não poderia ser diferente. O desfecho é mais uma alegoria sobre amoldar-se às saídas, sem insurgir-se contra o sistema: “Já que não consegui ascender de classe, vou desfrutar do que me é oferecido”. Pode soar comodista, de Yann sucumbir às imposições do capital, porém, para o espectador, ele pelo menos sobreviveu. Na verdade, os tempos são de sobrevivência, enquanto se gestam as transformações do sistema capitalista, cuja forma ainda não está de todo delineada. É o mínimo que se pode fazer.
“A Vida Vai Melhorar”. (“Une vie meilleure”).
França, Drama. 2012. 1h50m.
Diretor: Cédric Khan.
Elenco: Guillaume Canet, Leila Behhit, Slimane Khettabi.