“Cosmópolis”: Cruel alegoria
Diretor canadense David Cronenberg mescla gêneros para matizar personagem emblemático da Queda de Wall Street e suas consequências
Publicado 31/10/2012 12:59
Troque a limusine branca em que o especulador estadunidense Eric Parker (Robert Pattinson) se desloca por quarteirões da Nova York do século 21, em “Cosmópolis”, pela carruagem que vai a toda pela pradaria medieval para se entrincheirar no castelo em que passou a infância e esta alegoria traçada pelo cineasta canadense Davi Cronenberg será desvendada. Trata-se de uma questão freudiana e não só isto. Sua aposta via hedge (aplicações de alto risco) contra o yen, a moeda chinesa, pode render-lhe milhões ou fazê-lo perder todo o apostado.
É deste jovem especulador que Cronenberg, a partir da obra do escritor estadunidense Don DeLillo, trata em seu último filme. Mescla de drama, policial, terror e ficção científica, “Cosmópolis” é mais uma experimentação temático-narrativa. A maioria da ação se passa numa luxuosa limusine branca, símbolo de status dos financistas de Wall Street, com segurança, motorista e assessores que entram e saem como se revezassem em cena. Há em volta da limusine-casulo uma série de militantes do Movimento Ocupe, caçadores e vingadores que ameaçam o enclausurado Parker, com o ar etéreo do conde que provocou a ira dos servos e teme a invasão de seu castelo.
Daí a idéia de que se trata de um filme de terror. Ao invés de porções mágicas ou venenosas, ele se alimenta de informações, dinheiro e sexo. Suas assessoras se entregam a ele como se fizesse parte de suas atribuições. Depois tratam do assunto de seu interesse. Didi Fancher (Juliette Binoche) explica-lhe a resistência da paróquia a que adquira uma igreja centenária para instalar em seu apartamento de cobertura. Jane Melman (Emily Hampshire) discute suas aplicações e as condições de seu banco, enquanto transam. O sexo assim não brota do desejo, serve apenas para aliviar tensões.
Entretanto, esta é uma abordagem recorrente à obra de Cronenberg (1943). Sexo em seus filmes sempre foge aos padrões. Seus personagens estão sempre compensando a ausência de amor com relações intensas, luxuriosas. Em “Crash – Estranhos Prazeres”. (1996) a violência excita os casais. Quanto mais correm perigo, mais prazerosa é a relação sexual. Com Parker é diferente. Precisa agendar sua relação com a mulher Elise Chifrin (Sarah Gabon), pois se encontram quando muito em bares e restaurantes.
Parker é só um jogador
No entanto, Elise entende o quanto ele está perdendo em suas investidas contra o yen (O mega-especulador George Soros ganhou milhões ao apostar contra a libra esterlina). São milhões de dólares, e ela se oferece para ajudá-lo. Mas para ele, a perda faz parte do jogo: o jogador perde, mas ao ganhar leva tudo. Não se trata de uma operação de investimento produtivo, que gere empregos, expanda negócios, gere desenvolvimento – só especula ganhos imediatos ou futuros. Nada de produtivo rende para a sociedade.
Vem daí a temática futurista, de ficção-científica. O enclausuramento de Parker em sua nave – a limusine branca. Seu analista chinês Michael Chin (Philip Nozuka), com seus gráficos e projeções, o mantém plugado às bolsas do planeta, O mundo exterior inexiste para ele. Faz uma viagem solitária pelo universo virtual, mesmo rodeado de “alienígenas” (militantes do Movimento Ocupe, o caçador e o vingador). E com eles travará uma batalha pela sobrevivência. Afinal, para ele, o virtual é tão real quanto os ganhos bilionários por ele projetados em sua contínua especulação. É pura contradição.
Interpretações reforçam alegoria
Esta é, na verdade, também a temática política, porque os militantes do “Ocupe” e o caçador pertencem ao mesmo grupo. Eles o vêm como figura emblemática da Queda de Wall Street e, portanto, culpado por seus múltiplos problemas. Eles são os 99%, ele o 1%. Travam com ele uma batalha campal e picham sua limusine. É uma forma de Cronenberg dizer que os responsáveis pela atual crise do capitalismo, que pôs fim ao neoliberalismo, devem ter rosto, não ser identificados genericamente como capitalistas. Parker é esta face.
A derradeira incursão temática de “Cosmópolis”, daí o cosmo, o múltiplo, é policial. A frieza com que Parker liquida Torval e enfrenta Berno Levin (Paul Giamatti), mesmo com tiradas filosóficas, atesta sua capacidade de isolar-se para sair ileso. Paira sobre o Estado, que ressarci suas perdas, e a sociedade, em particular os trabalhadores, que arca com os prejuízos por ele causados. Daí a ira de Levin, que o culpa de tudo depois de ter sido por ele demitido.
Enfim, esta mescla de gêneros poderia gerar um filme híbrido, com entrechos desconexos. Nada disso ocorreu. Cronenberg deu-lhe o clima alegórico em que as situações não são totalmente particularizadas. As próprias interpretações não naturalistas o reforçam. Às vezes beiram o burlesco (veja a Didi, de Juliette Binoche). Os entrechos não se fecham como nos confrontos com o Ocupe. Dão a ideia de que o conflito continua. O próprio caçador Andre Petrescu (Mattieu Amalric) o diz. Parker não lhe escapará. Uma hora a história muda para o bem dos oprimidos.
“Cosmópolis”.
Drama. 2012.
França/Itália/Canadá/Portugal.
109 minutos.
Música: Howard Shore.
Fotografia: Peter Suschitzky.
Roteiro: David Cronenberg, baseado em obra de Don DeLillo.
Direção: David Cronenberg.
Elenco: Robert Pattinson, Juliette Binoche, Samantha Morton, Paul Giamatti