“Era uma vez eu, Verônica”: Impressões
Filme do cineasta pernambucano Marcelo Gomes sintetiza os dilemas da classe média brasileira nos impasses de médica recém-formada
Publicado 21/11/2012 12:25
Os dilemas da classe média pernambucana em instante de ocaso e ascensão de geração movem este “Era uma vez eu, Verônica”. Cheio de sombras, luz baça, corpos suados e sol crepuscular, ele penetra o subconsciente da personagem-título (Hermila Guedes), para dar conta de suas impressões. São elas que mostram seus impasses. Nada para ela, 24 anos, recém-formada em Medicina, está fechado. É um ser em construção.
O diretor/roteirista Marcelo Gomes (“Cinema, Aspirinas e Urubus”, 2005) deixa-os vazar em seus fluxos de memória em off. No quarto com o namorado Gustavo (João Miguel), no posto de saúde onde trabalha; no apartamento dividido com o pai idoso (W.J.Solha), nos encontros com as amigas ou quando está sozinha. Vive em constante dúvida, numa profissão que exige troca para arrancar o outro, o paciente, do sofrimento. Não é à toa que ela diz ao pai que se sente impotente, pois tudo em sua volta é desconectado de si.
Todo o filme gera em torno da frágil Verônica. Marcelo Gomes insere-a num universo em que a insegurança vem do meio, o da saúde pública, e de si mesma. Os corredores estão sempre abarrotados de doentes. Velhos, crianças, jovens. Seres desesperados em busca da cura. Qualquer uma. Uma orientação para pegar o remédio gratuito. Para aplacar a ansiedade de quem se recusa a sentar. Da universitária que quer apenas ser ouvida. Uma multiplicidade de situações que a angustiam.
Apoliticismo predomina
É o médico às voltas com os males da sociedade que gera doentes em série. E não se estrutura para reduzir seu índice em hospitais e pronto-socorros. A visão que se tem é de falência múltipla do sistema de saúde, público e privado. O Estatal, o SUS, atende as duras penas as camadas baixas. Os extratos médios se iludem com a adesão ao mercado da saúde, de altos custos e de tratamento de menos. Contribuem para um fundo privado cujos benefícios nunca recebem. Têm sempre de pagar por procedimentos fora de seu alcance, numa situação kafkaniana.
Enquanto isto, os médicos protestam contra os baixos honorários. O que vale no sistema de saúde privado são a propaganda e o gráfico de receitas crescentes. Até Verônica termina por inserir-se neste meio à custa de trabalhar no setor público e dar plantões noturnos numa clínica particular. É a saída para elevar sua renda e ampliar seus sonhos.
São estas projeções que reforçam outro entrecho do filme: o relacionamento de Verônica com o pai. Existe, porém, uma contradição em sua opção pela dupla carga de trabalho. Ela o faz para presentear o pai, fazendo-o retomar o que perdeu. Parece uma conquista, e é, porém o preço é demasiado. É a falida estrutura de saúde que a faz vergar-se à dupla jornada, o que significa adaptar-se a ela. Uma frase, um diálogo, a retiraria deste apoliticismo. O pai o faz; é mais critico do que ela.
Falta olhar mais crítico
Entretanto, este fio de sua relação com o pai rende muito em afetividade. Enquanto ele, aposentado, deixa-se tomar pela memória, sintetizada nos velhos discos de vinil, ela vai mudando suas impressões. Este interpenetrar de lembranças, as dele e as dela, ainda em formação, aproxima-os. Mais ainda quando o ocaso dele se aproxima. O passeio deles por Recife dá a dimensão das mudanças, do soterrar de uma era, O cinema de arte que, fechado, virou de igreja a supermercado, a velha casa onde moraram que oscila entre o aluguel e a venda.
Existe aqui muito do estrato médio brasileiro atual: o sonho de formar os filhos. É o reflexo da “Era do Despertar”, de inserção das camadas populares na estrutura sócio-econômica do país. O Pai obtém uma vitória ao vê-la médica. Ela, no entanto, está voltada para dentro. Ele a instiga a olhar pela janela, mergulhar no mar, dourar-se ao sol. É uma ideia e tanto. O idoso não é o idoso, é o instigador da vida. Ela está lá fora. Mesmo se divisada do alto dos espigões, da nublada paisagem das metrópoles. É a mesma em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte ou Nova York.
Trata-se da estética de torres de concreto dominada pela mesmice. O antídoto de Verônica é a verve brasileira. Alegria, carnaval, praia, sol, sensualismo, prazer. O paraíso de raças, miscigenação, cores e credos. Verônica boiando nas translúcidas águas do Atlântico sob o céu azul liberta-se de suas impressões. Há muito de matriz africana nesta sequência. A água salgada como purificação. E, enfim, o desligar-se de suas ilusões.
Mas o que falta ao filme é um olhar critico ao meio onde se insere a personagem. Verônica caminha indiferente aos pacientes. Enxerga-os de dentro para fora. Interioriza-os. Indigna-se com a doença deles, não com o que a provoca. Ao solidarizar-se com a Moça que busca apenas ser ouvida o faz por ver-se nela. Nem quando é obrigada a mudar-se do prédio onde mora, devido a falhas na manutenção, se insurge. O pai, não, indigna-se.
Talvez Marcelo Gomes quisesse criticar o comportamento da juventude emergente. Não se sabe. Ela ainda está tateando. Desconhece seu poder transformador. A inserção consumista, leva ao niilismo, ao alheamento. Verônica ao romper com Gustavo, ao que se vê, apenas desabrocha.
“Era uma vez eu, Verônica”.
Drama. 2012.
Brasil.
90 minutos.
Fotografia: Mauro Pinheiro Jr.
Música: Tomaz Souza/Karina Buhr.
Roteiro/direção: Marcelo Gomes.
Elenco: Hermila Guedes, W.J. Solha, João Miguel