Disparos: Prestes a explodir
Filme da cineasta brasileira Júlia Reis expõe as vísceras de um Brasil dividido entre a arrogância, a criminalidade e a violência cotidiana
Publicado 21/02/2013 21:44
A admitir a premissa da cineasta brasileira Juliana Reis, em seu filme de estréia, o Brasil está prestes a explodir. Em “Disparos”, seguindo a tendência do cinema brasileiro atual, ela pega um fato particular e, a partir dele, abre o leque com vários eixos para justificá-lo. Os personagens, de classe média, se dividem em reagir ao envolvimento num “atropelamento”, a culpa e a impotência, numa noite no Rio de Janeiro, sem encontrar saída para a violência cotidiana.
É daqueles filmes que vão se abrindo, ampliando a visão que a cineasta tem do conflito urbano, e sem análise sociológica, radiografar o momento histórico nacional. Numa noite, voltando para o estúdio, depois de fotografar a inauguração de uma boate gay, o fotografo Henrique (Gustavo Machado) e seu assistente Guto (João Pedro Zappa) são assaltados por uma dupla numa moto. De repente, eles são atropelados em meio ao trânsito. Henrique então se vê na delegacia, sem saber se é suspeito, testemunha ou vítima.
Este é o principal eixo do filme, baseado em fato real ocorrido com amigo da diretora. Os outros três: o da exasperada Silvana (Dedina Bernardelli); da carente Bia (Cristina Amadeo), namorada do fotografo, e Guto; e do proprietário da boate gay vão elucidar o caráter e as relações de Henrique. Ele é o personagem-padrão da mídia do circuito de alto luxo e sua suposta notoriedade. Diante do inspetor Freire (Caco Ciocler), ele tenta impor-se se dizendo fotografo importante, portanto acima de qualquer suspeita. É enfrentado por um policial frio, desinteressado de quem seja ele. Usa a arrogância dele para fazê-lo entrar em contradição, para, enfim, saber o que aconteceu.
Problema está no hospital
As sequências da delegacia destoam do que se espera de uma repartição cheia de suspeitos, culpados e vítimas. Durante as horas em que Henrique lá esteve Freire só atendeu a mulher que bate no marido à sua frente. A agitação surge apenas quando Freire leva Henrique ao Hospital Souza Aguiar para identificar o assaltante. Ali estão feridos, mortos, detidos, doentes, beirando o caos. Há o pai enervado por seu filho ser acusado de ter assaltado o fotografo, o médico Guido (Júlio Adrião) acostumado aos agonizantes, e os costumeiros desvalidos. Um universo diverso do seu, descortina-se para Henrique.
Grande insigth da cineasta/roteirista, fugindo do clichê da delegacia entupida de suspeitos, presos, policiais enlouquecidos. A paranóia é vista na rua, enquanto o assaltante agoniza. Um dos passantes descarrega nele sua ira, incitando os demais ao linchamento, que só não acontece devido à contenção dos demais. Há, assim, equilíbrio entre a barbárie e a lucidez. Uma tomada de posição de Juliana Reis, apenas num plano sequência. O corte para o aglomerado mostra o garoto afrodescendente chegando em casa ferido, para desespero da mãe. Inicia-se aí outra perambulação.
Juliana Reis, no entanto, não está interessada em enveredar para o espectro do filme-favela, que culpa mais os moradores do aglomerado do que os culpados por sua situação. A entrada em cena de Silvana, enlouquecida, é ótima. Ali está uma mulher que, num instante, decidiu tomar a si a Justiça. Transformou-se numa justiceira, e, depois, ao ver o que fizera entra em pânico. Tem uma crise de consciência. Diferente é a reação do marido: quer, a todo custo, evitar que ela confesse o assassinato.
Filme ajuda a entender o país
Juliana Reis muda desta forma o enfoque do filme. Trata tão simplesmente da reação dos personagens ao ato violento. Eles se desnudam como Henrique, que, ao ser confrontado pelo inspetor, perde a arrogância, humaniza-se, deixa de ser o fotografo todo poderoso. E Silvana que se vê diante da iminente prisão e sente as consequências de seu ato. Achar que o sistema de segurança do país é deficiente, é uma coisa, tomar a si sua responsabilidade é outra. Mesmo Henrique que o desdenha, o descobre em meio ao caos noturno.
Tivesse se concentrado nestes dois eixos, Juliana Reis teria tornado seu “Disparos” um grande filme, por mostrar o comportamento da classe média, perante a violência urbana. Tentou contextualizar o meio vivido por Henrique, introduzido dois outros: o da namorada Bia envolvida com seu assistente Guto e o dos ladrões que dopam o dono da boate gay, na Lapa. São eixos que destoam dos principais. Não bastasse isto, os personagens gritam o tempo todo. O silêncio, a contenção, pode traduzir muito mais seu estado psicológico. É mais eficiente.
Mesmo assim, “Disparos” é um filme de câmera e montagem eficientes, com belos enquadramentos. Quase um noir. Não se trata de “Um Som ao Redor”, que radiografa, sente e traduz o conflito vivido pelo país, mas ajuda a entender o momento histórico nacional. Principalmente quando mostra o marido tentando acalmar Silvana e, ao mesmo tempo, esconder sua real intenção. É o jeitinho brasileiro de tratar seus impasses. Debaixo do tapete já não deve caber tanta sujeira. Apesar dos inegáveis avanços, o Brasil ainda é assim.
“Disparos”.
Drama. Brasil.
2012. 82 minutos.
Trilha sonora: Mariana Camargo.
Fotografia: Gustavo Hadba.
Roteiro/direção: Juliana Reis.
Elenco: Gustavo Machado, Dedina Bernadelli, Caco Ciocler, Júlio Adrião.
(*) Festival do Rio 2012: Melhor fotografia, montagem e ator coadjuvante (Caco Ciocler).