“Hoje”: Velhos fantasmas

O acerto de contas de militante de esquerda com seu passado é o tema deste filme da cineasta paulista Tata Amaral

Os codinomes usados pela esquerda durante a Ditadura Militar (1974/1985) tornam-se um jogo de nomes e de troca de identidade neste drama político-psicológico da cineasta paulista Tata Amaral (“Um Chão de Estrelas”). A todo instante, Ana Maria relembra a Carlos que seu nome é Vera (Denise Fraga) e ele que o seu é Luiz (César Troncoso). É como se ambos quisessem reforçar uma identidade que trocaram para retomá-la adiante. E em sendo outro momento histórico, de retomada da democracia, é preciso que se acostume a seu antigo eu.

No entanto o maior dilema de Vera é que Luiz retorne. Ele desapareceu em 1974, auge da repressão do Governo Médici (1969/1974), e, em 1998, a Justiça já o deu como morto. Sua angústia, porém, é de outra natureza: é válido comprar um apartamento classe média, no centro de São Paulo, com o dinheiro da reparação recebida do Estado pela prisão e tortura sofrida nos porões da Ditadura Militar? É isto que irá atormentá-la durante a mudança para seu novo endereço.

O que matiza seu dilema é a forma como Tata Amaral, a partir do roteiro de Jean-Claude Bernardet, Rubens Rewald Felipe Sholl, estrutura as sequências mesclando o presente (a mudança), o passado (a presença de Carlos). O presente é iluminado, cheio de perspectivas, o passado dominado pelas sombras. A narrativa se alterna entre um e outro através da memória, a “presença” de Carlos, e do hoje configurado nos trabalhadores que fazem a mudança, na síndica que tenta impor sua autoridade e em Vera que oscila entre ambos.

Ana Maria purga suas fraquezas 

Este jogo permite à diretora, sem psicologismos, projetar os dilemas éticos e morais de Vera. Carlos é o fantasma que a atormenta e ela precisa dele se livrar. Sente-se culpada por usar o dinheiro da reparação para comprar o velho apartamento na Avenida São Luís e purgar seu passado. O recurso usado por Tata Amaral e seus roteiristas é fazê-la dialogar com este passado, repassando o que realmente a atormenta: o Artigo 8º das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988, que lhe garante a reparação, suas diferenças políticas com Carlos e a tortura sofrida por eles nos porões da Ditadura Militar.

Os recursos teatrais usados por Tata Amaral ao concentrar-se na memória de Vera e de Luiz, num fechar e abrir de flashbacks, escurecendo a cena e iluminando alternadamente a ambos dá clima intimista às sequências. Ajudam o espectador a entender as dores de ambos, as “culpas” e as mútuas acusações de fraquezas. Ela também foi militante, tinha uma visão pequeno-burguesa da luta, ele, no entanto, fraquejou diante dos torturadores. Estas contradições irão ajudá-la a livrar-se de seus fantasmas reais ou imaginários. E livrar-se deles irá apaziguá-la.

Mas são tênues as divisões entre o real e o imaginário traçadas por Tata Amaral. A própria Vera se confunde, não conseguindo separar o projetado do real, ao sair à procura de Carlos e não o encontrar. Ao retornar ao apartamento o reencontra e se surpreende. E finalmente ganha coragem para expulsá-lo saindo das sombras, enquanto ele simplesmente desaparece. É um belo uso da luz e das sombras, do real e do imaginário raramente visto no cinema nacional.

Anistia não cicatrizou corpos e mentes

O importante é que a diretora o faz sem perder o centro da narrativa: as sequelas das perseguições e das torturas sofridas pelos militantes de esquerda, democratas e progressistas durante a Ditadura Militar. Muitos, militares, direitistas e defensores do “esquecimento”, acham que a anistia cicatrizou as feridas do corpo e da mente e apaziguou as famílias dos desaparecidos. Porém, nenhuma conta foi zerada. Isto só acontecerá quando torturadores e seus chefes forem punidos, para que sirva de exemplo.

Vera só se livra de seus fantasmas quando os enfrenta, mostrando que as torturas e o desaparecimento de Carlos mudaram seu comportamento. Inclusive se recompõe de seu passado de ninfomaníaca, quando se entregava a desconhecidos, sem prazer algum. O ambiente fechado do apartamento, atulhado de móveis sem lugar definido, mostra que mudar é desarrumar. O que de mais urgente ela tinha era arrumar a própria mente. Na rua com amiga, em dia ensolarado, ela, por fim, desfez-se da culpa e de Carlos.

Entretanto há em “Hoje” traço de muitos filmes nacionais que retratam o militante de esquerda como autoritário, machista, pouco reflexivo. Carlos está sempre cobrando de Vera, cheio de rancor. Enquanto ela é frágil, indecisa, precisando se justificar a todo instante. É o que caso da sequência que gira em torno da lei que lhe dá direito à reparação. Reflete mais a relação conflituosa entre eles, do que o temor de ela ser recriminada por ele, devido ao uso que faz do dinheiro recebido do Estado. Há mais o que os separa do que os une. O inimigo maior, sem dúvida, era a Ditadura Militar.

“Hoje”.
Drama. Brasil.
2013. 87 minutos.
Música: Livio Tragtenberg.
Fotografia: Jacob Solitrenick.
Roteiro: Jean-Claude Bernardet, Rubens Rewald, Felipe Sholl.
Direção: Tata Amaral.
Elenco: Denise Fraga, César Troncoso, João Balbasserini, Lorena Lobato.

(*) Festival de Brasília 2012 – Prêmios: Filme, Atriz, Fotografia, Direção de Arte, Roteiro, Prêmio da Crítica.

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