Um comunista que não gostava de Tolstói
Um comunista que perdera o rumo da luta de classes, inda que sem o admitir, viu-se, com o tempo, sem o traço de afago no rosto; o mesmo com que, sem engulhos nas entranhas, recrutara operários para o seu Partido.
Publicado 31/01/2014 16:44
Hoje, tem os cabelos brancos e finos feito um véu de musselina. Assenta no rosto, no entanto, o que supõe ser o antigo ódio à burguesia, tão ao gosto do mesmo que contraíra quando ainda moço, nos promitentes anos de militância. Não faz pouco caso da dialética materialista, visto que seu perfil, e está certo disso, mantém-no distante, avesso às seduções do convívio com a burguesia proprietária dos meios de produção.
– Parasitas! – grita de vez em quando, mesmo sem a provocação de um eventual interlocutor.
O paletó de linho que usa nos ombros, um tempo raquíticos, deixa-o livre para manusear os livros nas prateleiras de lojas do sebo. Não são mais raquíticos os ombros; desde que emergira da clandestinidade, sob o furor da ditadura, Proteus Argamassa – convém chamá-lo assim, porque, a exemplo de alguns, tivera a militância limitada no tempo, inda que longeva – soube recuperar a rijeza das omoplatas e do fêmur.
– Proteus!
Virou-se rápido, mesmo tendo reconhecido a voz esganiçada, mas já dando sinais de fraqueza, do livreiro Melquisedec.
– Não me diga que tem novidades. Um sebista não tem novidades, tem raridades. Mas fale…
– Apareceu-me uma raridade tão antiga quanto nova.
Proteus Argamassa mirou o livreiro nos olhos, tentando distinguir alguma trapaça no cálculo de suas palavras.
– Veja!
– Li na juventude. Foi-me recomendado por Diógenes Arruda. Volto a ler por dois motivos: o marechal de aço não sai da memória dos comunistas, e Diógenes Arruda desfrutou do convívio com Stalin.
Pagou ao livreiro. Não pôs o livro debaixo de um dos braços; o gesto seria demasiado estudantil para um homem de sua estirpe; segurou-o com a palma da mão direita fechada; a da esquerda, feito um guarda bolchevique, protegeu a primeira sem a excitação de novatos.
Sentaram-se. A sombra da Praça do Sebo, com o mau cheiro vindo dos sanitários, junto com a ramagem de capim que cresce sem ordem nos jardins elevados, incita o pensamento. Os paredes borradas de musgos, no prédio à frente e no vizinho, acentuam a decadência do lugar. Na marquise do Edifício Continental, o capim mistura-se ao tom róseo desbotado das paredes. Ali, Proteus Argamassa encomendara os primeiros paletós que usara, junto a costureiros não de luxo, mas acostumados a sentirem-se objetos das urdiduras de vaidade da classe média.
– Foi ali que me recrutaram para o Partido – disse Proteus, apontando para o prédio, outrora reduto de alfaiates.
– Quem o recrutou?
– Diógenes Arruda. Recrutou-me e em seguida arrebatou Teresa Costa Rego.
– Arrebatou!?
– Desapropriou a bela Teresa dos salões da burguesia.
Quando se levantou para sair, Melquisedec deu-lhe um exemplar antigo d'A Classe Operária.
– Ah… – agradeceu Proteus.
– Continua sem gostar de Tolstói?
– Continuo.
– Mas ele doou suas terras aos camponeses…
– Mas não renunciou ao título de conde!
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