O mercado do amor e a escassez em tempos de neoliberalismo

“O sistema econômico em que vivemos cria em nós um espelho em forma de identidade pessoal. (…); somos empurrados a fazer escolhas automáticas a partir de desejos que foram introduzidos em nossos inconscientes.”

Ilustração: Hanna Barczyk

Estamos vivendo sob uma constante mudança de modelos de comportamento no que se refere ao amor, ao formato dos compromissos e aos variados graus de intimidade que estabelecemos com as pessoas no dia a dia. Estas mudanças decorrem das rupturas institucionais (casamento, família, divisão do trabalho, dentre outros) e morais (conceito de certo e errado, justo e injusto) que têm se acelerado nas últimas décadas.

Como tais mudanças são bruscas e rápidas, nos sentimos, muitas vezes, perdidos ou até mesmo oprimidos. Tanto pelo aspecto da identidade pessoal quanto do moral e político, já que nossos laços afetivos são a chave da constituição de nossos sentimentos e ideias. Somos “animais políticos” segundo Aristóteles, e espírito de uma consciência última (decorrente da história) determinado pela finitude, pela liberdade e pela razão, segundo Hegel.

O paradigma da abundância e da escassez

Do ponto de vista da economia, temos o paradigma da escassez, de um lado, e o da abundância, de outro. Estes dois pontos de vista são usados como lentes que escolhemos colocar ao interpretar o mundo, e são opostos um ao outro.

Pela lente da escassez percebemos que tudo é finito e, portanto, acaba. Temos medo que as coisas acabem. Não temos condição de pensar em repartir porque não tem para todo mundo. Pode colocar a substância que quiser aqui: desde comida, casa, alegria, amor, até renda, direitos e boa condição de vida.

Precisamos vencer para conquistar nossa parte e prosperar. Somente através da derrota do outro, nosso rival, progredimos. O paradigma da escassez leva ao medo e à sensação de insegurança. Se não tem para todo mundo, diminuímos os outros, furamos fila, nos tornamos obstinados pela nossa meta pois temos pressa em ganhar o pouco que o mundo oferece. E não podemos dormir no ponto, ou seja, relaxar.

A decisão de enxergar a vida pela lente da abundância faz com que o mundo se torne uma fartura de benefícios para todos, pois, agora sim, tem para todo mundo. Tem espaço, tem tempo e tem tranquilidade. Tem comida, tem casa, tem emprego, tem serviço público universal de alta qualidade, tem alegria e tem amor. Tudo isso com a lógica do compartilhamento e não do estoque. O foco é cuidar muito bem do que já temos ao invés de ansiar pelo que não possuímos.

Aliás, preferimos nos somar ao coletivo do que possuir coisas de uso exclusivo e particular. Justamente o compartilhamento permite que a riqueza se multiplique. Seja a riqueza de renda ou do compartilhamento do amor.

A primeira, que gera uma classe trabalhadora com alto poder aquisitivo, potencial científico, filosófico e artístico para produzir mais conhecimento, e uma vida ainda mais abundante. A segunda, pela qual amantes podem distribuir afeto de forma livre e, quanto mais estes sentimentos são compartilhados, mais produzem satisfação a todos. Lembrando que amizade é uma forma de amor.

O modelo de abundância no amor não foca em “retorno” ou resultados que um “empreendimento” possa proporcionar ao investidor, ou seja, não há cobrança pela expectativa criada por uma das partes.

Vivendo a escassez no amor

A insatisfação gerada pela carência, após uma boa noite de sexo, se encaixa na lente da escassez. A pessoa que sente um vazio quando não recebe flores ou uma ligação com declaração de amor no dia seguinte; a pessoa que só faz sexo depois de um contrato assinado com comunhão de bens; e a pessoa que paga a conta do restaurante ou do motel para que possa assim ser correspondido sexualmente, à altura do investimento, demonstram atitudes que só se justificam pela lente da escassez de amor.

Como já dito, tal lente afasta quem a usa do compromisso com o presente e com o que já se possui.  Leva seu usuário a se comprometer muito mais com expectativas de ganho no futuro do que com a qualidade do encontro. No entanto, a sintonia com o outro e com o coletivo só pode ser consequência da tranquilidade no tempo presente.

Tanto a pessoa que sente um vazio no dia seguinte a uma divertida noite romântica, quanto a pessoa que não tem sua sede por sexo saciada, de acordo com o que investiu, se veem fracassados. O amor e o sexo aqui são vistos como prêmios para quem mereceu. A crença de que um compromisso afetivo “vantajoso” só pode ser conquistado por altas castas de homens e mulheres em um mundo desigual, leva parte dos homens e mulheres a acusar os movimentos de libertação sexual de promíscuos. Se amor e sexo são disponíveis a todos, já não são mais prêmios para distinção dos vencedores.

Mulheres e homens no ranking: Canalhice, rivalidade e meritocracia

Não é raro vermos mulheres modernas acusando outras mulheres de se tornarem objeto sexual dos homens, por transarem “demais”. Se esquecem que o prazer sexual é também uma potência das mulheres. Como a referência ao prazer sexual feminino é uma conquista muito recente, e muitas mulheres possuem traumas e dificuldades diversas em sua busca, passam a condenar esta forma de vivência como se fosse uma exclusividade masculina.  Tratam as fêmeas humanas mais liberadas sexualmente como rivais e inimigas “da causa”. As “vadias” ou promíscuas distribuem o que elas querem que permaneça escasso, para ser usado como um prêmio, sendo um tipo de ouro, que o homem precisa merecer para ter acesso.

Nesta lógica, se há abundância de corpos femininos à disposição do deleite masculino, os homens tenderiam a rejeitar, ainda mais, a ideia do comprometimento. Pela ótica da escassez, o sexo se reduz a moeda de troca feminina. Se imagina que todas as mulheres são naturalmente dadas ao namoro e ao casamento e que fugir desta natureza, seria auxiliar os homens em oprimir o outro sexo.

Mulheres rivalizam entre si em competição constante pela atenção de seres que foram treinados, desde a infância, a cobiçar muitas pessoas ao mesmo tempo e a “marcar pontos” pela quantidade. Além disso, os homens treinam o tempo todo a repressão dos seus sentimentos já que “se envolver” é coisa de mulherzinha.

Num mundo onde o olhar masculino avalia e julga a experiência do que é ser mulher, a grande ambição é ser “a escolhida”. Esta distinção demonstra a meritocracia daquela que realmente foi reconhecida na difícil disputa do mercado amoroso. O grande medo do gênero feminino é deixar de causar atração nos homens e estas, muitas vezes, anseiam conquistar um homem que lhes “banque” econômica e/ou afetivamente.

As mulheres gastam grande parte de seu precioso tempo e renda na busca de driblar fatores herdados da natureza  como o formato do corpo e a idade. Para tentar vencer na competição do mercado de afetos, através da disputa acirrada pelo amor dos homens, que, em sua maioria, não está disponível ao contrato amoroso.

Grande parte das mulheres não se sente completa e dizem se sentir vazias sem um homem ao seu lado. Se o homem não atribui um bom “valor” à mulher, se não a “valoriza”, foi porque a mulher não se expôs da maneira correta, perdendo assim pontos com o time dos homens e das mulheres, ao mesmo tempo.

Mulheres avaliadas como mais “rodadas” e difamadas, num mundo onde impera a chantagem e a vigilância constante de toda a sociedade sobre o prazer feminino, ser mulher fácil é garantia de títulos de rebaixamento moral.

E aqueles que não se encaixam?

O elogio à beleza, à magreza e à juventude das mulheres caminha lado a lado com o sofrimento da complexa relação destas com o espelho, na qual o medo de ser feia, engordar e envelhecer causa perturbações que afetam a saúde física e mental. Crescem os casos de suicídios e as mortes por distúrbios alimentares. Os tratamentos e cirurgias para “corrigir” o corpo feminino não param de evoluir e ganhar adeptas, dispostas a serem, até mesmo, cobaias.

A estética e a moda ditadas nas grandes metrópoles difundem o padrão branco, magro e jovem como único. As negras almejam “se branquear” e corrigir traços ancestrais com os recursos que estiverem disponíveis. A tristeza de não se encaixar no padrão é provocada pela própria indústria da beleza, uma das mais lucrativas do mundo, e se alimenta da competição de quem se expõe como uma mercadoria na prateleira. As mulheres raramente estão tranquilas com a própria aparência e estão dispostas a pagar altos preços na tentativa de atingir metas irreais.

Do lado dos homens, a lente da escassez leva ao sentimento de posse e exclusividade da parceira como constituinte de sua identidade de gênero, enquanto o reforço à infidelidade segue sendo visto com bons olhos nos meios masculinos mais modernos. São adeptos do poliamor, mas só da porta de casa para fora; e sem que suas parceiras saibam. O famoso “sou poliamoroso, mas não contei pra minha mulher”. Eles vivem ou almejam viver aventuras sexuais diferentes com pessoas diferentes, mas entram em pânico ao pensarem em suas cônjuges transando com outra pessoa.

O termo “corno” não sai de moda, sendo sinônimo de fracasso, assim como “brocha”, e “bixa”, dentre outros. Isso demonstra como é longo o caminho a ser trilhado e como somente a difícil troca de lentes pode transformar uma sociedade profundamente patriarcal, neoliberal e homofóbica, onde a violência diária ganha ares de natural e o combo feminicídio + homofobia ganha força dia a dia.

Importante destacar que nesta tentativa de definição de comportamentos masculinos e femininos não há uma regra rígida. Existem homens utra-românticos que querem uma princesa encantada e existe muita mulher violenta, assim como tudo isso pode ser encontrado em casais não heteronormativos e não binários, pois somos fruto de nosso tempo e de nossa sociedade, mesmo os que fogem a algumas regras.

O medo e a ansiedade do sujeito neoliberal

O sistema econômico em que vivemos cria em nós um espelho em forma de identidade pessoal. A partir do acirramento da concorrência (do mercado de trabalho e das empresas) no neoliberalismo; e da exacerbação do consumismo hedonista; somos empurrados a fazer escolhas automáticas a partir de desejos que foram introduzidos em nossos inconscientes. E como vivemos estressados, cansados e ansiosos, nutrimos o medo da perda. Sem tempo e energia para pensar, respondemos aos estímulos, por meio do dispositivo do mercado amoroso. Somos subjetivados por esta racionalidade neoliberal, e acreditamos que fazemos escolhas quando, na realidade, nossas condutas são normatizadas por saberes e poderes que se articulam e atravessam nossos corpos. Além disso, nunca o objeto de nossa conquista é prazeroso o suficiente.

A corrida pelo bem-estar individual, também decorre da sensação de desamparo, já que somos naturalmente carentes segundo as mais aceitas teorias psicológicas. Este desamparo ancestral é explorado pelo neoliberalismo, que responsabiliza o indivíduo pelo seu próprio sucesso ou fracasso, sempre contrapondo os interesses da pessoa aos da sociedade.

Abolir, reafirmar ou refundar o casamento, ser monogâmico ou não, se tornar assexual ou lascivo, dentre outras atitudes, não atingem a raiz da mudança da lente da escassez para a lente da abundância até porque não se trata aqui de comprar uma fórmula pronta numa farmácia, tampouco se trata de uma religião que podemos trocar por outra como quem troca de roupa. E para complicar ainda mais, relações humanas não vêm com manual de instruções.

Sedentos de consumo, rebaixamos nossa qualidade de vida a partir de preocupações que são introduzidas em nós. A liberdade de expressão dos sentimentos e da verdadeira liberdade afetiva somente passa ao primeiro plano quando nos divorciamos dos excessos e nos tornamos mais “minimalistas” e coletivistas, utilizando a reflexão como meio de ganhar mais segurança e abertura ao diálogo com outras formas de afetividade possíveis, mais confortáveis e tranquilas. Mais favoráveis à abundância.

Novas possibilidades ou mais do mesmo?

É muito comum encontrarmos adeptos do poliamor e da não monogamia defendendo a tal “responsabilidade afetiva” como sinônimo da obrigação do outro em corresponder na medida exata do que se deseja. Se a pessoa não corresponde, é cancelada ou exposta. Muda-se o número de parcerias, mas a justificativa da escassez de amor permanece.

Um exemplo disto, é o tal unicórnio, termo difundido nas comunidades não monogâmicas, para ridicularizar casais que supostamente estariam usando de seu privilégio para buscar mulheres e objetificá-las sem oferecer uma relação afetiva estável. Também vemos difamações de pessoas diversas que se permitem ter prazer sem compromisso (sem expectativas de longo prazo) nestas comunidades. Nesses casos, o prazer oferecido gratuitamente, sem cobrança de retorno, corrompe a moral da escassez, pois libera algo que deveria estar estocado.

Temos pessoas modernas e descoladas em defesa ferrenha contra o sexo livre. Temos uma boa parte da comunidade gay ridicularizando o corno, o feio, o que tem pouca grana e pau pequeno. Uma boa parte das mulheres é ridicularizada por todos por serem “vadias” ou rejeitadas. São os estigmas de mulheres e homens que fracassaram em seu papel de gênero.

Novos termos também surgem para definir ideias antigas, que agora passam a ser vistas como orientação, como por exemplo o demissexual e o sapiossexual. Porém não há muita novidade em reproduzir o ideal romântico ou em se atrair por quem fala bonito e tem boas ideias. Nada disso é novo e devemos tomar cuidado para não usar muletas de apoio ideológico ao nosso excesso de dependência afetiva, ao invés de tratá-la devidamente.

Nós lutamos pela livre orientação de gênero, mas continuamos a moralizar condutas? Em nome de quê? Da exacerbação da rivalidade entre concorrentes, mesmo e sobretudo nestas comunidades, que se veem como mais progressistas que o padrão dominante.

Precisamos ser mais solidários, caminhar de mãos dadas e entender que há espaço, tempo e amor para todas as pessoas. Amor não pode ser estocado, cercado, exigido. É um afeto livre que, ao ser distribuído entre as pessoas, tende a se multiplicar.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho

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