O povo ficou com os canhões e o governo fugiu para Versalhes

Tropas do governo de Thiers tentaram retirar os 250 canhões da Guarda Nacional da capital, populares e guardas não deixaram. A bandeira vermelha flutua em Paris.(*)

«Enquanto copio o meu relatório, ouvem-se bruscamente disparos de canhão. Vou imediatamente aos correios, que fecham as portas. Ia enviar um telegrama, mas não me deixam. Em cada rua da margem direita, garante-me a nossa empregada estrangeira, erguem-se barricadas, com rodas de carroça, pedras e troncos de árvore, as pessoas só podem passar com palavras-passe aprovadas pelos revoltosos, não se pode circular sozinho. Vou à estação dos comboios e dizem-me que o comboio só chegará às 7 horas da tarde. Embaraçado, volto para casa para agradecer ao meu senhorio e dizer-lhe adeus». É com estas linhas que o intérprete da delegação diplomática chinesa, Zhang Deyi, 23 anos, descreve o sucedido neste dia 18 de Março de 1871, quando as tropas do governo de Versalhes tentaram levar os mais de 250 canhões da Guarda Nacional parisiense.

Uma tarefa que o primeiro-ministro Adolphe Thiers tinha considerado fácil, ignorando que «este governo incapaz de prender os 25 membros do Comité Central da Guarda Nacional, deu ordem para surripiar 250 canhões guardados por Paris inteira», como nota o jornalista adepto da Comuna Prosper-Olivier Lissagaray.

Vejamos como tudo se passou: às três da manhã, milhares de soldados sem víveres e mal equipados dão início à operação do governo. Vão para as colinas Chaumont, para Belleville, para o faubourg (subúrbio) do Temple, para a Bastilha, para o Hôtel-de-Ville, para a praça de Saint Michel, para o Luxembourg, no 13º arrondissement, para os Invalides.

O general Susbiele, que se dirige a Montmartre, comanda duas brigadas de cerca de seis mil homens. Todo o bairro ainda dorme. A brigada Paturel ocupa sem fazer fogo o Moulin de La Galette. A brigada Lecomte dirige-se para a torre de Solférino e só encontra uma sentinela, de nome Turpin, que ergue a baioneta e é imediatamente abatido. Correm depois para o posto dos Rosiers que tomam e prendem os poucos guardas nacionais nas caves da torre. Nas colinas de Chaumont, em Belleville, por todo o lado onde os parisienses tinham colocado os canhões, as tropas do governo chegam e tomam conta das baterias facilmente. O governo triunfa. Louis Jean Baptiste d’Aurelle de Paladines, nomeado comandante da Guarda Nacional pelo governo, envia uma proclamação de vitória aos jornais, que foi publicada em vários vespertinos.

Os canhões estão tomados, só falta levá-los. Os cavalos tardam e só às 8h da manhã os primeiros canhões são atrelados para serem levados. Não é tarefa fácil. Muitas peças não têm as rodas da frente, outras estavam propositadamente bloqueadas.

Entretanto, os subúrbios da cidade acordam. Nas paredes são visíveis as proclamações do governo: «Habitantes de Paris, no vosso próprio interesse, o governo resolveu agir. Que os bons cidadãos se apartem dos maus e ajudem a força pública. Os culpados serão entregues à justiça. É preciso, custe o que custar, que a ordem renasça, completa, imediata, inalterável…», assinam Thiers e os seus ministros, os cartazes ainda húmidos de cola nos muros da capital.

Como acontece a maior parte das vezes, nas revoluções, as mulheres foram as primeiras a agir. Apesar de terem sofrido a fome e o cerco das tropas prussianas, não baixam a cabeça e rodeiam as metralhadoras e os soldados e oficiais que as acompanham:

É uma vergonha! Que fazes tu aí?

Os soldados calam-se. Às vezes um tenente responde meio cabisbaixo:

Vá lá, vizinhas, afastem-se.

Mas o tom de voz é de quem não quer empreender uma acção violenta contra as mulheres que os interpelam. Até que ao longe começa-se a ouvir os tambores. Uns guardas nacionais descobriram dois tambores no posto da Rua de Doudeauville e começam a tocar e a percorrer o 18º arrondissement para mobilizar o povo e os combatentes. Passa pouco das 8h e já 300 guardas nacionais sobem o boullevard Ornano. Sai um contingente de militares de posto do 88º, mobilizado pelo governo, que lhes grita à passagem: «viva a República», e juntam-se aos guardas nacionais e à população em direcção à colina defendida pelos soldados desse regimento, estes vendo os seus camaradas entre a população e os milicianos de Paris, fazem sinal que os deixarão passar. O general Lacomte apercebe-se dos gestos, manda-os substituir por polícias e prende-os na torre Solférino, ameaçando-os: «Já vão ver o que vos espera».

Mas os polícias, que substituem os militares, mal têm tempo de reagir: são submergidos pela população, guarda nacional e soldados ao lado dos revoltosos. O general Lacomte ordena que façam fogo três vezes, mas os homens recusam e continuam com a arma a tiracolo. A multidão junta-se e confraterniza com os militares, o general e os seus oficiais acabam presos.

Três tiros de canhão de pólvora seca anunciam a Paris a reconquista das colinas, são os tiros que põem em sobressalto o tradutor da delegação diplomática chinesa e o fazem partir.

Às 11h, o povo venceu a agressão em toda a linha, conservando quase todos os canhões. As tropas do governo só conseguiram levar dez. O povo sublevado e a Guarda Nacional tinha, pelo seu lado, apreendido uns milhares de espingardas levadas dos quartéis das tropas governamentais.

Ao meio-dia, d’Aurelles lança um último apelo antes de retirar as tropas do governo para Versalhes:

«O governo chama-vos a defender os vossos lares, as vossas famílias, os vossos bens. Alguns indivíduos transviados, obedecendo apenas a chefes secretos, dirigem contra Paris os canhões que foram subtraídos aos prussianos.», um argumento do roubo às tropas invasoras não comove os visados, que leva o governo de Thiers a tocar a tecla da conspiração: «Espalhou-se o boato absurdo que o governo preparou um golpe de Estado. O governo apenas quis acabar com um comité insurreccional cujos membros representam apenas as doutrinas comunistas, poriam Paris a saque e levariam o país à perdição».

Thiers e o seu governo, face à situação, tinham-se refugiado no Ministério dos Negócios Estrangeiros, decidem sair da cidade com o resto das suas tropas, evitando mais contactos dos soldados que lhe restam com a população. Fugindo para Versalhes.

No dia seguinte, a bandeira vermelha flutua no Hôtel-de-Ville.

Cronologia da Comuna de Paris

1870

19 de Julho : O governo do Segundo Império declara guerra à Prússia

2 de Setembro: Derrota do exército francês na batalha de Sedan; abdicação de Napoleão III;

4 de Setembro: Proclamação da República; início da «Terceira República»; constituição do governo provisório;

15 a 18 de Setembro: Tropas prussianas atacam Paris;

22 de Setembro: Delegados de 20 distritos de Paris reivindicam a Comuna;

31 de Outubro: Tentativa insurreccional: trabalhadores e a Guarda Nacional ocupam o Palácio Municipal de Paris (Hôtel-de-Ville); repressão pelas tropas fiéis ao governo republicano;

1871

5 e 6 de Janeiro: Paris é bombardeada pelo exército prussiano;

22 – 23 de Janeiro: Tropas reais ao governo reprimem trabalhadores e a Guarda Nacional em frente ao Palácio Municipal de Paris; Proibição da circulação de jornais e suspensão das liberdades civis

28 de janeiro: Assinatura do armistício com o governo prussiano; capitulação de Paris;

8 de Fevereiro: Eleição da Assembleia Nacional; a maioria é constituída por legitimistas rurais e burguesia orleanista;

17 de Fevereiro: Thiers é indicado para a chefia do poder executivo

24 a 26 de Fevereiro: Os insurrectos de Paris iniciam negociações com o governo de Versalhes e deslocam artilharia para os subúrbios de Paris;

1 a 3 de Março: Tropas prussianas ocupam o Champs-Élysées 10 de Março – Assembleia Nacional transfere-se para Versalhes; suspensão do soldo da Guarda Nacional; anulação do congelamento do pagamento das dívidas e alugueres atrasados;

10 a 15 de Março: Constituição do Comité Central da Guarda Nacional;

18 de Março: O governo de Thiers tenta capturar os canhões em poder dos comunnards, mas são contidos pelo povo parisiense e pela Guarda Nacional; à noite o poder municipal é tomado pelos insurrectos: início da Comuna de Paris;

19 de Março: Comité Central da Guarda Nacional decide por eleições para constituir o Conselho da Comuna;

26 de Março: Eleição da Comuna de Paris;

29 de Março: Suspensão do decreto sobre o pagamento de dívidas; manutenção do soldo da Guarda Nacional; devolução dos objectos penhorados;

2 de Abril: separação da Igreja do Estado;

3 e 4 de Abril: os comunnards fracassam no ataque a Versalhes;

19 de Abril: divulgação do Programa da Comuna;

28 de Abril: instituição do ensino público gratuito e laico; proibição do trabalho nocturno para os padeiros;

1 de Maio: instalação do Comité de Salvação Pública;

21 de Maio: tropas de Thiers avançam sobre Paris e são rechaçadas parcialmente pelos insurrectos; início da chamada Semana Sangrenta;

22 de Maio: o Conselho da Comuna conclama os parisienses a resistir por meio das barricadas;

25 de Maio: a resistência dos communards é vencida em quase toda Paris; última reunião dos remanescentes do Conselho da Comuna

28 de Maio: cai a última barricada em Faubourg du Temple; início do massacre contra os communards que ainda resistem.

Fonte: AbrilAbril

*O Portal Vermelho preservou o português lusitano da publicação original.