A majestade de Zico comportava a elegância, mas também a malícia, a imprevisibilidade, o toque do samba na ponta da chuteira
Publicado 25/01/2025 09:29
Caetaneando versos da bola, alguma coisa acontece no meu coração quando lembro daquele menino de Quintino, zona norte do Rio de Janeiro, desfilando talento nos gramados do mundo e, principalmente, no Maracanã. Da poesia concreta de seus passes e tentos. Da pura elegância enquanto acalantava os amantes do futebol com toques de refinado esmero artístico. Arthur Antunes Coimbra não apenas jogava por música – conduzia a batuta diante dos adversários em agonia e da torcida embevecida em uníssono com o espetáculo do camisa 10 da Gávea.
Esta é para mim a analogia inevitável. Galinho e arte. Zico e canção. Não caberia jamais apenas dentro das quatro linhas de um campo a dimensão estética que as lembranças de vê-lo jogar suscitam em minha geração. Não à toa o cancioneiro popular do Brasil guarda lindas declarações de amor e gratidão ao craque. Zico retribuía em versos, lindos passes, gols de letra entrou em campo e, mesmo fora de casa, bateu um bolão. Cantou, batucou e foi sucesso.
O “Galinho do Quintino” gravou, em parceria com seu compadre Raimundo Fagner, um compacto simples em 1982, substituindo ninguém menos que o bamba Martinho da Vila, vetado pela gravadora. As canções compostas por Petrúcio Maia foram: “Cantos do Rio” e o grande sucesso “Batuquê de Praia”, que fez o Brasil cantar e rebolar a saia, “ Não é qualquer carnaval / Não é qualquer litoral que faz a minha cabeça, não / Não é qualquer fuzuê / Não é qualquer não-sei-quê / Que vem bater no meu coração…” E não parou por aí. Zico cantou e, principalmente, foi cantado em verso e prosa, samba, rap e rock. Coisa de gênio!
Os Novos Baianos fizeram a cabeça do Brasil na década de 70 em musica, rebeldia e versos. Mais que um grupo musical, eles se identificavam como uma comunidade e um time de futebol em que se destacavam os craques Paulinho Boca de Cantor, Galvão, Dadi, Baby, Pepeu e o craque flamenguista Moraes Moreira. Este último foi autor de diversas músicas em homenagem a Zico. Na década de 1990, já saudoso, Moraes Moreira manifestava o seu desacordo com o adeus do ídolo ao Flamengo e aos gramados. Da insatisfação com essa enorme injustiça do tempo nasceram do violão baiano as lindas composições “Só pra ver Zico jogar” e “Saudades do Galinho”, “ E agora como é que eu fico nas tardes de domingo sem Zico no Maracanã? / Agora como é que eu me vingo de toda derrota da vida / Se a cada gol do Flamengo eu me sentia um vencedor?”. Golaço de inspiração!
Jorge Ben Jor foi outro imortal da MPB que prestou reverências ao rei da Gávea. Ao narrar em bom carioquês a plástica infalível das cobranças de falta do meio-campista, o nosso querido Babulina escreveu a pérola dançante “Camisa 10 da Gávea”. “Pois mesmo quando não está inspirado / Ele procura a inspiração / E cada gol, cada toque, cada jogada / É um deleite para os apaixonados do esporte bretão”. Esta canção foi composta em 1976, após Zico simplesmente marcar os quatro gols da vitória sobre o rival Fluminense, dando ao Flamengo a “Taça Nelson Rodrigues”.
Bebeto, o “Rei dos Bailes” , gênio do samba-rock, cantou seu time e ídolo nos clássicos “Flamengão” e “Arigatô, Flamengo”, quando o time derrotou o Liverpool por 3 x 0 e ganhou Mundial de Clubes no Japão. “Mais uma vez lá na terra do Sol Nascente / esse time inteligente fez o povo ser feliz”. Haja suingue e alegria!
A majestade de Zico comportava a elegância, mas também a malícia, a imprevisibilidade, o toque do samba na ponta da chuteira. Esse ritmo em campo certamente bebia também do apreço do jogador pelo pandeiro, pelas rodas de pagode. Uma conexão muito além de estatísticas boleiras ou títulos de campeonato mundo a fora.
Em 2014 Galinho foi tema de samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense (“Oô, o povo cantava / Domingo, um show no gramado / Com seus cavaleiros, Arthur se tornava o Rei do Templo Sagrado”). Recebeu ainda as honrarias da bateria da Estácio de Sá: “Será que você lembra como eu lembro do mundial que o Zico foi buscar?”.
Zico foi o coração do mais belo futebol já visto em seleções, com a Amarelinha de 1982. Fez coisas inimagináveis nas vestes rubro-negras. Tornou-se marco fundamental na história da Udinese e no Japão conquistou uma legião de fiéis. É por isso que não há como nos contentarmos meramente com imagens do passado ou lembranças de nossas memórias, que muitas vezes nos falham e traem. Arthur merece poesia, melodia e contemplação.
Para concluir, relembro a linda canção em homenagem aos 60 anos de Zico, cuja gravação teve a participação de um timaço: Dominguinhos do Estácio, Buchecha, Arlindo Cruz, Grupo Fundo de Quintal, Alcione, Dudu Nobre, Xande de Pilares, Leo Jaime, Neguinho da Beija Flor, Frejat, Sandra de Sá, Jorge Aragão, Marcelo Serrado, Júnior, Marcelo d2, Bruno Coimbra, Dominguinhos do Estácio e outros craques cantaram a pérola, “ZICO é o “Rei dos Humildes” / Glória do manto sagrado / Deus do povo rubro-negro / Luz que brilhou nos gramados / Todos se curvam ao camisa dez…”
Zico jogava por música. O lugar do seu canto é no coração de todos os que amam o futebol arte.
Viva o “Galinho do Quintino”!
*Evaldo Lima é Professor, Historiador e membro da Academia Cearense de Direito. Em Fortaleza foi Secretário de Esporte (2008-2012), Líder de Governo (2013-2016), Secretário de Cultura (2017-2018), Presidente da Comissão de Educação da Câmara Municipal (2013-2020) e Presidente da Federação Brasil da Esperança (PT-PCdoB e PV).