Autora catarinense concilia a temática participante com um rigoroso e belo trabalho com a linguagem
Publicado 16/03/2025 20:00 | Editado 17/03/2025 17:53
Márcia Frigg, poeta, militante e professora residente em Indaial (SC), autora do livro de poesia Lâmina (Kotter Editor), é autora de poemas que fazem um retrato crítico da situação política e social do país, e em especial os embates vividos nos últimos 12 anos entre os defensores da democracia e os saudosos da ditadura militar, que ainda hoje tentam golpear as instituições do País. Seguindo a orientação de Maiakovski, a autora catarinense concilia a temática participante com um rigoroso e belo trabalho com a linguagem.
*
Teias
Negarei teu nome
e apelido, o apelo
da tua voz aos
meus ouvidos.Negarei tuas mãos
e dedos, tuas digitais
nos meus segredosNegarei teus passos
e abraços, tua brisa
em meus cabelosNegarei a fome
do teu corpo
e meus saltos triplos
em teus abismosNegarei ao meu
desejo, teu selo
e endereçoNegarei os búzios
as cartas, o zodíaco
e todos os oráculos.Negarei as trapaças
do destino.Negarei ao medo
o meu medo
de tropeçar
nas tuas teiasEu só não negarei
nossas veias
de infinito.
*
Decreto do medo
Destituiu-se a aurora
depôs-se as horas
mais claras do diaO pôr do sol
será eterno no céu da
boca na boca do
estômago nas mãos
crispadas
de espantoNão nascerão cores
neste chão calcinado
regado pelo sangue
de girassóis, onde
tombam lírios
e cerram os olhos
dos jasmins– flores ceifadas pelo
decreto da bala.Foi interrompida
a primavera para
as mães
– desérticas gardênias –
que seguem – ainda que não oSaibam – a embalar no
colo
o filho eterno e para
sempre…
morto(Pelas crianças mortas por bala perdida. Brasil, primavera de 2019)
*
Oráculo
Na cordilheira
da tua omoplata
um triângulo de asas
dorme
no estreito
a cintura do desejo
ergue-se em labareda
a aorta lateja dúvidas
teu corpo
– catedral incandescente –
teu peito
– oráculo esquivo –entre cálices de cinza
e copos de sol
em carne vivaa vida escorre
entre medos!
*
Manto
Antes de sussurrar
meu nome
e navegar estas ilhas
– êxodo das minhas águas –
colhe da chuva
a delicadeza dos pingos
para que eu deseje
buscar afluentes
nos teus braços
desaguar-me como fonte
reconstruir minhas
águas íntimas
peço que me aceites
como manto
sobre o rio do teu sono
e recebas meu corpo
como concha do teu
Se nos estranharmos
à luz desses mistérios
sossega!
Ainda somos véspera!