A esquerda, a razão e o sentimento
A esquerda perde terreno na comunicação de massa ao ignorar o poder dos sentimentos, enquanto a extrema-direita domina redes sociais com emoção e fake news.
Publicado 25/04/2025 17:27

Debate-se, hoje em dia, pela mídia e pelas redes sociais, sobre a surra que a extrema-direita vem aplicando na esquerda em termos de comunicação de massa. Uma das questões que se coloca a respeito é que a direita, além de dominar os instrumentos das redes e de sua linguagem, ocupa-se prioritariamente do sentimento em suas mensagens, enquanto a esquerda, além de não ter dominado tais instrumentos, ocupa-se prioritariamente da razão.
Na atualidade, a extrema-direita mundial parece ter substituído a opção pelos tradicionais golpes militares, ou golpes de força de um modo geral (judiciários ou parlamentares) para galgar o poder, pelo domínio das mentes através de vastíssima cadeia de informações decuplicada pelas redes sociais e pelas manipulações das grandes empresas de tecnologia. Como não pode tratar da verdade, que a condena, vale-se das “fake news” para veicular suas mentiras e da exploração de sentimentos em sua estratégia de ganhar corações e mentes para seus propósitos. A luta ideológica ganha, assim, “status” de inéditas proporções.
Em seu livro “Sob o céu de junho – As manifestações de 2013 à luz do materialismo cultural”, o jornalista Fábio Palácio, professor adjunto do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão, menciona como, contemporaneamente, “na luta ideológica, a emoção e o sentimento se sobrepõe à razão”. Por isso mesmo, as “fake news”apelam essencialmente para a emoção, a violência, o medo”, algo que se afeta principalmente a juventude.
O pensador socialista Raymond Willians, citado por Fábio Palácio, atualizou o pensamento do marxista italiano Antônio Gramsci quanto à guerra cultural. Afirmou que nas condições atuais, a luta ideológica se dá mais pelo sentimento do que pela razão.
O tema volta à tona com o livro “Domínio das mentes”, publicado em 2024 pela Editorial Kotter, do ex-deputado constituinte Aldo Arantes. Estudioso, de longa data, das questões referentes à luta ideológica e à guerra cultural, Arantes afirma: “A esquerda, em geral, foca muito na razão, subestimando o sentimento. É evidente que é através da razão que se pode explicar um programa de lutas. Todavia, há que se levar em conta que, através do sentimento, atinge-se milhões de pessoas. Há, assim, que combinar a razão com o sentimento. Em determinadas camadas sociais, o apelo ao sentimento atinge mais do que o apelo à razão”. Para Aldo, subestimar a importância da luta ideológica e suas características atuais coloca a esquerda na defensiva diante dos avanços da extrema-direita.
Quando penso nisso, recordo-me sempre de uma peça da propaganda eleitoral de Lula, nas eleições de 2002, obra do talentoso Duda Mendonça. Dezenas de mulheres grávidas, espalhadas em linha horizontal, descendo por uma colina ao som do Bolero de Ravel. Vestindo batas brancas, expondo as barrigas, sorrindo, felizes, algumas com crianças no colo. Vão se aproximando. Quase ao final do vídeo, Chico Buarque fala em off, lentamente, intimista, dirigindo-se ao coração de quem o assiste: “Você não pode escolher se seu filho será menino ou menina. Não pode escolher sua altura nem a cor dos seus olhos. Muito menos o que ele vai ser quando crescer. Mas uma coisa você pode escolher: que tipo de país você quer para ele”. Então Chico urge em on dizendo: “Se você não muda, o Brasil também não muda”. Emoção pura, contagiante a serviço da ideia de um novo Brasil, esperançoso, justo e solidário, em mensagem que nenhum discurso racional poderia alcançar.
A jornalista Sara Goes, âncora da TV247, vem insistindo nessa questão do simbólico e dos sentimentos. No início de fevereiro último, publicou o artigo “O boné, budejo e uma esquerda que não sabe ser feliz”, em que registrou como um simples boné azul (“O Brasil é dos brasileiros”, criação de Sidônio Palmeira em resposta ao trumpista “America great again”) “conseguiu gerar um volume impressionante de discussões, análises e, claro, reclamações”.
Sara Goes afirma que, para a esquerda, “qualquer ação precisa passar por um escrutínio interminável, como se fosse possível atingir um estado de pureza ideológica e estética antes de ser validada. Enquanto isso, a direita age com pragmatismo: não perde tempo debatendo a tonalidade de um boné ou o design de uma fonte. Veste a camisa – ou o boné – e parte para a batalha comunicacional sem grandes angústias”.
Eu diria que a esquerda sempre esteve mergulhada numa espécie de “tesismo”, expressão que criei para caracterizar essa propensão pela extrema racionalidade, mergulhada em discussões infindáveis até mesmo sobre questões as mais prosaicas, incapaz de perceber que suas teses, bandeiras, palavras-de-ordem podem – e devem – ser traduzidas, para efeito da comunicação de massa, em pensamentos breves, simples, de apelo afetivo e fácil compreensão popular. Isso parece, a essa esquerda, uma vulgarização, uma simplificação condenável do seu “refinado” pensamento. Ora, enquanto não compreender as novas realidades da sua tão decantada luta de classes, onde a comunicação de massa alcança níveis dominantes, enquanto não se especializar no uso das redes sociais e perceber que a razão não basta, capturando a estratégica dimensão dos afetos, perderá sempre daqueles – em particular a extrema-direita – que compreenderam os sinais dos novos tempos, e usam à larga os instrumentos que, pela internet, difundem suas mentiras a partir dos sentimentos no afã de ganhar corações e mentes.