Muitos eus

Entre sonhos, rituais e identidades ocultas, documentário com Sidarta Ribeiro revela como múltiplos eus habitam cada um de nós e questiona as máscaras do cotidiano.

O cientista Sidarta Ribeiro em cena do documentário "Criaturas da Mente" de Marcelo Gomes | Foto: Isabela Cunha/Divulgação

Minissérie no streaming. Enciclopédia de Istambul. Nada excepcional, mas agradável para passar horas. Um fato me chama a atenção. Não passa despercebido, fico refletindo.

Uma jovem interiorana vem para a cidade grande. Precisa ser aceita, se fazer presente na vida universitária. De religião islâmica, sua fé é um empecilho para ser reconhecida num grupo de teatro. Esconde, não usa o véu, nem burca. Vida dupla, a das orações, da fé que professa, a da academia e seu grupo, em que quer ser aceita. Contradições, crises interiores. Vida desconectada, dois mundos que não se falam.

Sexta feira à noite. Minha companheira me convidada para ir ao cinema. Abrirei mão da cervejinha na Mercearia do Seu Artur, da música de Romero. Aceito. Um filme que me instiga.

O Diretor Marcelo Gomes, de filmes sempre provocativos. Lembro de Cinema, Aspirinas e Urubus, seu primeiro filme. O atual, com a participação de um grande neurocientista, Sidarta Ribeiro, conheci nas lides acadêmicas e tenho o maior respeito por ele.

“Criaturas da Mente”, tema complexo, nada simples de compreensão o tema. Mas feito de uma maneira leve e bem agradável de ver.

Mexeu comigo. Documentário que nos mostra o quão o mundo e, principalmente, nós mesmos, somos desconhecidos. Uma frase não sai de minha cabeça. “Eu sou muitos eus dentro de mim”.

Não é no mundo exterior, mas naquilo que internamente ocorre e somos. A vida “concreta”, os sonhos, a incorporação de entidades, os transes, viver exige diferentes personagens, diferentes atores que representamos em nosso cotidiano, na vida dita real e no inconsciente que nos conduz.

Interessante notar que na antiguidade essas vidas eram aceitas, nos gregos e nos egípcios, por exemplo, há vasta literatura sobre o assunto.

Também, nos povos originários, indígenas e aborígenes, valorizados, vidas paralelas que seriam vividas sem culpa, integradas às atividades corriqueiras, interpretadas por pajés e xamans, jamais desprezadas, jamais ironizadas.

As amarras sociais sufocam, nos enquadram, nos tiram a liberdade de ser, nelas estamos no dia a dia, convenções que nos impedem de ser nosso eu desejado momentâneo, que nos obrigam a assumir identidades que não nos identificam, que são exigidas por um meio tolhedor que nos enquadra.

Não se sabe ao certo o que são os sonhos, mas, sem dúvida, tem importância crucial para a vida humana.

Sempre foram interpretados. Eram, vistos como sinais divinos, como profecias. O inconsciente analisado e vivenciado, como um mundo em que as amarras sociais podem desaparecer, em que somos um eu em sua plenitude, longe das convenções, longe das repressões que nos sufocam. Ou não?

A psicologia, desde Freud, tornou campo de estudo privilegiado, as forças internas, chamadas pulsões, a energia mental que precisa ser extravasada.

Trailer Oficial de “Criaturas da Mente”

Procurando entender as áreas e funções do cérebro humano, mais recentemente, a neurocirurgia tem tido seu foco de estudos voltado  para os sonhos.

Sono e sonho são preocupações atuais. Entendidos como reflexos de processos cerebrais, muitas vezes complexos, caminhos para abordar experiências traumáticas ou de perdas de memória. Sua compreensão, para uma corrente importante dos profissionais da área, pode ser o caminho para uma vida mais saudável.

Nesse contexto se enquadra Sidarta, sua experiência como profissional da área é a linha mestra dos relatos feitos.

O documentário apresenta bases sólidas de interpretação. Inclusive junguianas, dando ênfase à importância de arquétipos e do inconsciente coletivo.

Mas, não só, não é um filme de relatos científicos, está fortemente assentado em vivências e em meios que nos levam a conhecer nossos eus interiores.

Sem receitas pré-fabricadas, sem certezas absolutas, mostra caminhos utilizados, alguns de tradições milenares para descobrirmos o que e para que somos. Nestes, três se destacam além dos sonhos e me impactaram: a incorporação de entidades, os transes e os alucinógenos.

Os rituais das culturas das religiões afro, o incorporar de entidades, as mensagens deles advindos, mostrados com muito respeito e consideração.

Os médiuns e os transes, o poder que alguns seres humanos possuem. As pessoas mais sensíveis e predispostas a uma busca de contatos espirituais que levem a outros espaços, a outras verdades que só são desvendadas por essas conexões. Caminhos importantes para melhor nos conhecermos enquanto sociedade.

As experiências alucinógenas, desde os rituais com ayahuasca até os menos impactantes como os com a jurema. Rituais secretos que permitem entrar em contato com eus muitas vezes desconhecidos, mas que são parte de nossa personalidade. Experiências fortes, impactantes, em geral secretas.

Fico pensando na mini série assistida e de como, quase sempre, escondemos personagens que somos em prol da aceitação de um mundo socialmente vigiado. De como deixamos de viver a riqueza que nós somos em prol de algo que nos subjuga, nos torna “hipócritas”.

Muito bom o desenrolar do filme, o mostrar de que sonhos devem ser vividos, se possível revisados, que eus não devem ser escondidos.

Sonhos acordados existem. E nisso temos muito a dizer em nosso País, em nossa região. Podemos mostrar que, pelo menos, em cinco dias ao ano deixamos tudo sair, somos o que queremos na busca de procurar nossos diferentes perfis desconhecidos. Assumimos nossos personagens encobertos. Carnavais, explosões que nos expõem, intensos, vividos em plenitude.

Assistir o documentário, uma experiência que muito diz, que pode ajudar a nos conhecer.

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