Suíça votará imposto de 50% sobre mega-heranças em referendo nacional

Proposta socialista será votada em novembro e enfrenta forte oposição da elite econômica do país. Proposta taxa heranças para financiar justiça climática

Militantes da Juventude Socialista da Suíça protestam em frente ao Parlamento, em Berna, durante a entrega das assinaturas pela Iniciativa pelo Futuro, que propõe tributar em 50% as heranças acima de 50 milhões de francos suíços para financiar políticas climáticas. (Foto: Reprodução/Juso)

O governo da Suíça marcou para 30 de novembro o referendo sobre a proposta da Juventude Socialista (Juso) que taxa em 50% as heranças e doações acima de 50 milhões de francos suíços (cerca de R$ 313,5 milhões).

Segundo a organização, a medida apelidada de “Iniciativa pelo Futuro” pode gerar uma arrecadação anual de 6 bilhões de francos (R$ 37,6 bilhões), inteiramente destinados a políticas de combate à crise climática com foco em justiça social.

A proposta foi apresentada em 2022 e avança sobre o coração do modelo econômico suíço, historicamente marcado por impostos baixos sobre grandes fortunas e uma política de neutralidade fiscal que atrai bilionários estrangeiros. 

A Juso argumenta que a transformação ecológica da economia exige uma mudança radical na distribuição da riqueza. “As mega-heranças dos ultra-ricos destroem nosso clima e nossa democracia”, afirmou a presidenta da organização, Mirjam Hostetmann.

Para os proponentes, não se trata apenas de arrecadar: o imposto proposto visa também quebrar a lógica da impunidade ambiental de quem lucra com o modelo vigente. 

“Sem uma participação justa dos super-ricos, será a população como um todo que pagará a conta”, declarou Hostetmann em nota. A iniciativa não afeta heranças abaixo dos 50 milhões de francos e atingiria apenas cerca de 2 mil pessoas no país — ou 0,05% dos contribuintes.

No sistema de democracia direta da Suíça, qualquer cidadão ou grupo social pode propor uma mudança constitucional se reunir as assinaturas necessárias. 

As iniciativas não dependem da aprovação do Parlamento para serem votadas. Após a validação das assinaturas, o governo federal (Conselho Federal) define uma data para o referendo, independentemente da posição das instituições políticas. No caso da Iniciativa pelo Futuro, a votação foi marcada para o dia 30 de novembro de 2025.

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Governo e Parlamento rejeitam proposta e se alinham aos super-ricos

Em dezembro de 2024, o Conselho Federal, o Executivo suíço, recomendou a rejeição da proposta, alegando que o novo imposto poderia comprometer a estabilidade fiscal, afetar a reputação do país e provocar a evasão de contribuintes bilionários. 

A análise do Executivo estima que mais de três quartos da arrecadação potencial poderiam ser perdidos caso os afetados decidam se mudar da Suíça — argumento repetido em coro por banqueiros, empresários e veículos da grande imprensa internacional.

O Parlamento seguiu a mesma linha. Em junho de 2025, o Conselho dos Estados (equivalente ao Senado) votou por 36 a 7 contra a proposta, com apenas uma abstenção. 

O Conselho Nacional (câmara baixa) já havia rejeitado não só a iniciativa como qualquer contraproposta alternativa. Na prática, a maioria burguesa do Parlamento reafirmou sua posição de blindagem dos interesses das grandes fortunas, mesmo sem poder barrar a realização do referendo.

O Partido Socialista Suíço criticou duramente a decisão. “Embora os super-ricos sejam responsáveis pela maior parte das emissões de CO₂, é a coletividade que arca com os custos sociais e ecológicos dessa crise”, disse o senador Carlo Sommaruga. 

Para ele, a recusa do Parlamento em discutir alternativas para distribuir melhor a riqueza revela a incapacidade da elite política de enfrentar as desigualdades crescentes.

Além da crítica ambiental, a proposta também se insere em um contexto de profunda desigualdade patrimonial no país. As 300 pessoas mais ricas da Suíça concentram hoje mais de 833 bilhões de francos (R$ 5,224 trilhões), dos quais 666 bilhões francos (R$ 4,176 trilhões) são herdados, segundo dados da própria Juso. 

Ao mesmo tempo, a maioria da população enfrenta estagnação salarial e custos crescentes de vida. A proposta da juventude socialista busca, portanto, inverter essa lógica em nome de um futuro possível para os 99%.

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Mídia liberal e mercado financeiro ampliam o pânico das elites

A reação da elite econômica foi imediata — e amplificada pelos meios de comunicação aliados ao capital financeiro. 

Jornais como o Financial Times e a Bloomberg passaram a destacar, com ênfase alarmista, declarações de banqueiros e bilionários preocupados com o futuro de suas fortunas. O banqueiro Frédéric Rochat, do Lombard Odier, chegou a afirmar que “o simples fato de a proposta existir já cria incerteza”

Mais escandalosa foi a declaração de Peter Spuhler, um dos homens mais ricos do país e dono da gigante Stadler Rail. Segundo ele, se o imposto for aprovado, seus herdeiros terão que entregar até 2 bilhões de francos suíços (aproximadamente R$ 12,5 bilhões) ao Estado.

A frase foi usada pela Juso como prova da obscena concentração de riqueza no país e do medo que a elite tem de qualquer redistribuição real.

“Essa reação mostra quem lucra com a crise climática e quem foge da responsabilidade”, resumiu Julien Berthod, vice-presidente da Juso.

A entidade empresarial Economiesuisse classificou a proposta como um “risco à estabilidade da Suíça como destino internacional confiável para negócios”. 

A narrativa do desastre iminente, repetida por consultores e colunistas do setor financeiro, foi sendo costurada com ameaças veladas de êxodo, desinvestimento e fuga de talentos — o vocabulário clássico do terrorismo liberal.

Esse pânico orquestrado também serve para deslegitimar a ideia de que uma transformação ecológica da economia é viável sem atacar privilégios. A própria Juso denuncia que o discurso da inovação e da “sustentabilidade empresarial” serve para esconder a ausência de políticas climáticas estruturais. 

“Continuar colocando o peso da crise sobre os 99% é permitir que os ultra-ricos sigam lucrando às custas do nosso futuro”, afirma a organização.

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Pesquisa desfavorável é reflexo do cerco ideológico da elite

O terrorismo liberal provocou reação negativa a proposta dos socialistas. Uma pesquisa publicada em agosto de 2024 pelo Swissinfo apontou que 67% da população suíça se opõe à proposta. 

O dado, amplamente citado por parlamentares e veículos de imprensa, tem sido tratado como indício de derrota iminente. 

Mas sua divulgação veio no auge da campanha de desinformação liderada pelos setores conservadores, o que levanta dúvidas sobre o grau real de adesão popular à proposta após a campanha do “terror fiscal”.

Além disso, analistas críticos do sistema político suíço apontam que o modelo de dupla maioria exigido para aprovar mudanças constitucionais (maioria de votos populares e maioria das províncias) costuma ser uma barreira adicional para projetos de redistribuição de riqueza. 

Ainda assim, a Juso e setores da esquerda confiam que a campanha poderá reverter parte da rejeição e transformar o plebiscito em um marco da disputa social.

Mesmo diante da pressão da elite econômica, o movimento em defesa da Iniciativa pelo Futuro segue ganhando apoio de sindicatos, ambientalistas e movimentos de moradia. As mensagens centrais da campanha — justiça climática, taxação dos super-ricos e redistribuição da riqueza — têm potencial para mobilizar os setores mais afetados pelo custo da crise ecológica e social.

A depender da mobilização nos meses que antecedem a votação, o referendo poderá expor não apenas as contradições do modelo suíço, mas também o medo que as elites têm de que a crise climática seja enfrentada de forma justa. O plebiscito de 30 de novembro será, mais do que um teste fiscal, um teste democrático.