“A Casa de Alice”: Cruel Fantasia

Chico Teixeira retrata em seu filme a vida de uma família proletária paulistana, cheia de fantasias e aparências, que refletem a falta de opções existente hoje na estrutura social burguesa brasileira.

Numa cidade em que a notícia mais freqüente na mídia é o trânsito ensurdecedor, monstruoso, e, aparentemente, sem solução, o cotidiano de uma família proletária de São Paulo se torna assunto corriqueiro, que nenhuma manchete rende. Pelo menos aparentemente. Uma olhada através de suas janelas irá mostrar que naqueles cômodos a vida escorre no mesmo espaço, mas seus moradores estão cada vez mais distantes um do outro. E se este olhar for mais detido, encontrará tema para várias edições jornalísticas porquanto os dramas que ali se desenvolvem atestam o beco sem saída que eles são levados por uma estrutura social, da qual fazem parte, mas com ela não interagem. Tal é a conclusão que se chega após ver “A Casa de Alice”, filme de estréia do brasileiro Chico Teixeira, premiado em diversos festivais internacionais.


 


Nada há, nas primeiras seqüências, que indique para onde o publico será levado pelo diretor. Ele lhe apresenta uma família comum, dessas a que ninguém presta atenção, dada à sua semelhança com outras tantas que povoam prédios, conjuntos habitacionais e barracos da periferia. Alice (Carla Ribas), manicure quarentona, divide um pequeno apartamento com o marido taxista Lindomar (Zécarlos Machado), a mãe Jacinta (Berta Zemel) e os três filhos, um deles adolescente. À mesa, no café da manhã ou no jantar, cada um serve-se à custa do outro, sem conversa, mas sussurros, atritos, gruídos, enquanto Lindomar, alheio a tudo e a todos se mostra distante do ambiente.



Filhos de Alice lhes são estranhos



Apenas Alice tenta provocar uma unidade que, devagar, ela descobre impossível. Os filhos lhes são estranhos. Nem respondem a seus cumprimentos quando ela volta do trabalho à noite. Só a atendem quando estão às turras e ela intervém para evitar o pior. E o marido, Lindomar, raramente aparece na hora do jantar. Prevalece então a solidão em meio ao grupo, embora este grupo seja a família nuclear, principal centro da sociedade burguesa. Seus membros não estão ali para dividir bons e maus momentos, ser solidários, encontrando saídas para os impasses de forma coletiva, pelo contrário, estão ali para criar soluções individuais para problemas coletivos. Surge daí, no mesmo grupo familiar, vários núcleos que se unem ou se afastam de acordo com interesses momentâneos.


 


Nenhum desses núcleos gravita em torno de Lindomar. Ele é seu próprio núcleo. Sua vida não se limita à família. Tem vida independente. Furtiva. Igual a milhares de “chefes de família” nas megalópoles. Têm seus casos, seus amigos e agem como se tudo corresse às mil maravilhas, inclusive em casa. Vivem, portanto, de aparências, aliás, um dos temas centrais de “A Casa de Alice” (ao escolher cada um a sua fantasia, as aparências só tendem a predominar). Quando precisa, Lindomar lança mão de estratagemas, usando um ou outro filho para atingir seus objetivos. E vai em frente, como se direito seu fosse, esquecer suas relações familiares.



Avó é a única pessoa lúcida da família



Como cada um trata de sua vida, a sogra, Jacinta, faz de tudo no apartamento: cozinha, lava, passa e cuida da roupa, que revela as intimidades de cada um, principalmente do genro, cujas escapadas são por demais evidentes. Se quisesse o desmascararia, porém percebe ser inútil, pois causaria mais sofrimento à filha e desagregaria ainda mais o que está pouco agregado. É o único personagem na casa entregue à sua vida e à dos outros, procurando sempre não criar seu próprio núcleo. A ela todos recorrem; inclusive o neto Edinho (Ricardo Vilaça) ao qual mais se liga, e do qual será vítima. Os outros dois estão entregues à suas descobertas, como o adolescente Lindomar Júnior (Felipe Massuia), que tenta fazer seu rito de passagem e é “ajudado” pelo irmão Lucas (Vinícius Zinn).  Este, iniciando sua carreira militar, se impõe aos demais, às vezes a tapas e apropriação do que não lhe pertence.


 


Resta Alice, preocupada com a manutenção da casa e do emprego de manicure. Ao seu redor gravitam todos, da mãe, à qual dedica atenção redobrada, aos filhos e ao marido, ainda que este prime pela ausência. Mas Alice não é um núcleo, pelo contrário, por mais que tente exercer um papel central, os outros lhe escapam. Lindomar por ter vida dupla, coisa normal na sociedade machista, em que ao homem é “permitido” variar, burlar o tédio com casos amorosos, muitas vezes na face da companheira; os filhos, sem exceção, por auscultar os próprios sentidos e se amparar uns nos outros. E, por fim, a mãe que, temerosa de ser causadora da desunião familiar, guarda segredo, pelo qual pagará caro. E ela, Alice, assim, vai entendendo a dialética da sociedade burguesa, em que cada um fantasia a vida que leva até compreender que ela não lhe basta.



Solidão de Alice é a mais perversa



Quando Alice chega a este patamar, o filme amarra as pontas soltas e ganha em significado. Deixa de ser apenas sobre o cotidiano de uma família proletária para enredar o público numa série de eventos que ilustra o quanto de hipocrisia reina nas relações familiares e amorosas. E a solidão de Alice é a mais perversa, a que mais dor causa. Ela o percebe na noite que melhor se preparou para receber o marido, e ele, ao invés de lhe retribuir com carícias, a recrimina. Lágrimas rolam, reprimindo o soluço, o grito, a reclamação. O que para ela era uma forma de sedução, para ele não passou de um deslize imperdoável. Enquanto isso, suas relações no trabalho lhe permitem conhecer outras pessoas, enredar-se com a cliente Carmem que, à custa de – de novo – fantasia, desperta-a para ocultas possibilidades.



Nesse vai-e-vem, ela tolera as negligências de Lindomar, a falta de carinho e atenção dos filhos e os problemas criados pela idade da mãe. Tenta se encontrar e o faz de maneira velada, a exemplo do marido. O mundo de possibilidades lhe é solar, florido, cheio de paixão e futuro. Pouco importa se Lindomar sabe ou não. Fecham-se, desta forma, os núcleos criados por “A Casa de Alice”. Chico Teixeira encontra justificativas para todos os comportamentos, sem entrar na denúncia, carregar a mão, torcer por um e outro núcleo. Ele os apresenta como naturais; ocorrências normais nas famílias proletárias (ou não) modernas. Não há melodrama, corações feridos, salvo quando Alice descobre um dos deslizes de Lindomar, mas não corre atrás dele para buscar satisfação. Sofre; solitária. Tudo fica entre ela e a mãe, ainda que ambas não conversem sobre o assunto. Cada uma deve cuidar de sua vida para manter a “harmonia da família”.



Filhos de Alice tramam contra ela



De qualquer forma, ela também tem agora motivos para não se importar. Trama silenciosamente uma saída honrosa, deixando para trás, inclusive filhos, mãe e marido. Os filhos também, sem que ela saiba, já fizeram suas escolhas e, sabedores do caso do pai, acham normal o que está acontecendo. Edinho o ajuda até a levar a melhor sobre a avó. Nenhum deles é, portanto, inocente. Alice tem então razões para engendrar sua trama. No entanto, Chico Teixeira, porquanto tenha aberto diversas caixas, não às fecha à maneira de Hollywood. Elas estão abertas para o publico criar suas próprias expectativas, não para ele resolvê-las, deixando as situações claras. Se ele, o público, torce por Alice, achando que ela sairá do inferno em que sua vida se tornou, é por sua conta e risco.



”A Casa de Alice” não é um drama de suspense, tipo a heroína encontra seu príncipe e são felizes para sempre. Há momentos em que parece ser este o desfecho. Um drama ao estilo de Ida Lupino, atriz e diretora sueca, famosa nos anos 50, principalmente seu filme “O Bígamo”. Entretanto, como se trata de obra onde o real termina por ser suplantado pelas fantasias, Alice deixa o público desatento frustrado. Ela não compreende que o desfecho de seu caso com o amante Nilson (Luciano Quirino), não poderia ter solução diferente da que ele deu para resolver sua própria vida, em si desgastada pela mulher Carmem (Renata Zhaneta). Ela se vê descartada, no instante em que via uma saída para seu cotidiano massacrante. Nilson era sua salvação, uma paixão adolescente retomada na idade madura, espécie de mão salvadora. Tinha tudo preparado e ele lhe escapa.



Barulho demarca o campo da loucura



Este encadear de situações surgem ao longo do filme, sem imposições, músicas explicativas, que realcem as situações. Em “A Casa de Alice” não há música, mesmo incidental, só o barulho ensurdecedor das ruas, buzinas, gritos, vozes, comuns na megalópole. O que traduz o conflito interior de Alice, sua luta para fugir ao massacre do cotidiano, da família, onde é apenas mais um núcleo, com seus problemas, que não fecham com os dos filhos e muito menos com os do marido. Carla Ribas consegue passar estes tormentos, às vezes contidos, às vezes externados com sorrisos quando está diante de Carmem, no salão de beleza, e as duas trocam impressões sobre suas vidas, ou com choro ou irritação quando se vê diante de um impasse em família. Até Alice enredar-se nas aparências, a partir das fantasias de Carmem. Esta fantasia sua vida com Nilson, enquanto Alice o faz com Lindomar: tudo fica às mil maravilhas, quando na verdade as cordas da ponte elevadiça estão carcomidas. E elas vão trocando de lugar até estarem uma diante da outra, num confronto, que não se confirma. É o anticlímax que demarca a posição de cada uma delas. E as fantasias se esboroam. Igualmente, a tendência do público de punir os demais núcleos.


 


A vida, porém, não oferece saídas visíveis, só aparências que precisam ser transformadas em realidade. Esta realidade, ao deixar de ser mera fantasia, pode oferecer opções que, uma vez construídas, serão soluções exeqüíveis para gente como Alice. Chico Teixeira não deixa claro se ela o conseguirá. Seu cotidiano também não o indicam. Igual a milhões de Alices na megalópole, ela continuará sua busca. Se ela encontrará uma saída satisfatória só ela saberá. Na estrutura burguesa atual, com a moral entregue ao jogo de aparências, é muito difícil. Assim, “A Casa de Alice” passa a idéia de ser um filme pessimista, que nenhuma solução aponta. Fica nas contingências. No fundo está apenas refletindo a realidade imperante nas grandes cidades, onde o que predomina é o barulho ensurdecedor que aliena, embotando mentes e corações.


 


O mesmo barulho refletido nas músicas, nas festas, nos bailes, nos shows, consignando uma rapidez, uma urgência que dá pouco espaço à reflexão sobre os rumos do cotidiano e, portanto, sobre a vida que cada um leva. É o caso de se dizer: se houver silêncio cada um dia sentirá o peso de sua própria existência e o vazio então levará à loucura, pois o que há é um imenso vazio. Um abismo criado pela necessidade de substituir as estruturas carcomidas por outras que criar opções reais de existência coletiva. Chico Teixeira tira, no final, o público da letargia ao colocá-lo diante do barulho infernal, que é, repita-se, a confusão em que vivem as Alices Brasil afora. É com ele que se sai do cinema e se entra – alguém duvida – direto na gritaria urbana, igual ao que se acaba de ver em “A Casa de Alice”.


 


“A Casa de Alice”. Drama. Brasil. 2007. 90 minutos. Roteiro: Chico Teixeira, Júlio Pessoa, Sabina Anzuategui, Marcelo Gomes. Direção: Chico Teixeira. Elenco: Carla Ribas, Berta Zemel, Zécarlos Machado.

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