A Comuna de Paris encerrou um ciclo histórico. E abriu outro

Viva a Comuna!

«A barricada da Praça Branca, defendida por mulheres» (Maio de 1871). Litografia de Hector Colomb, dito Moloch (1849-1909), Museu Carnavalet, Paris, França.Créditos/ blog de Michèle Audin

Entre Março e Maio de 1871, a França e a Europa – centros pulsantes do Capitalismo em pleno processo de sua consolidação como modo de produção dominante em todos os aspectos, da produção econômica à configuração dos Estados Nacionais sob o comando da Burguesia – vivenciou um abalo político de novo tipo: o proletariado, a massa trabalhadora assalariada urbana de Paris, tendo a classe operária como seu polo dinâmico, pulsante e comandante, desencadeou uma Revolução que ficou marcada profundamente na História humana. Por três meses, o proletariado parisiense assumiu o controle da capital da nação e implantou, ainda que por curto tempo, uma experiência de governo até então única: o primeiro poder de Estado assumido pelo jovem proletariado urbano, buscando construir uma nova sociedade, não capitalista. Comunista.

A Comuna como legado do jacobinismo

Le Dernier Jour de la Commune de Paris 1871 – Grand Panorama, Léon Choubrac-Hope (1883)

A Comuna de Paris foi de uma radicalidade profunda nos seus aspectos políticos, basicamente destruindo por três meses o Estado forjado pela Revolução Francesa de 1789. Um Estado que tinha inovações inerentes aos princípios Iluministas professados principalmente pela filosofia francesa do século XVIII, mas que guardava ainda resquícios da velha estrutura aristocrática da França comandada pela Monarquia Absolutista, destronada e guilhotinada pela segunda onda revolucionária deflagrada pelo Partido Jacobino que governou o país entre 1792 e 1794, período que entrou para o senso comum da historiografia como “O Terror”. Vários aspectos das medidas adotadas pela Comuna de 1871 ecoam o radicalismo do Partido Jacobino.

Os Jacobinos, liderados por Maximilien Robespierre, Marat, Danton, Saint Just, ousaram impulsionar o espírito revolucionário de 1789, desencadeando um intenso movimento de reformas políticas e sociais que visavam varrer a velharia política, econômica e ideológica, herdadas da monarquia absolutista, ainda com fortes traços medievais, especialmente nos aspectos ideológicos. Da Proclamação da República com a consequente extinção da monarquia e da nobreza como classe social, à reforma agrária radical que visava desmontar o poder econômico da velha aristocracia de origem feudal, passando pela instituição do voto universal masculino, o fim da escravidão nas colônias francesas – o que desencadeou mais à frente a guerra revolucionária haitiana pela independência – e o fechamento da Igreja Católica, um dos esteios do “Antigo Regime”, o período jacobino havia sido até então a primeira grande tentativa de revolucionar a sociedade europeia de alto a baixa, sob a ótica da pequena burguesia radical, da chamada “Sans Culoterie” – a massa de trabalhadores urbanos de Paris – e do campesinato pobre e submetido ao poder da nobreza francesa.

Não me cabe aqui fazer uma análise geral e profunda dos sobre os efeitos gerais do período jacobino na revolução francesa e para além das suas fronteiras nacionais e temporais. Mas cumpre dizer que a dialética envolvida na Revolução Francesa – a luta contra o Absolutismo e o obscurantismo ideológico de origem Medieval enraizado no catolicismo reacionário então vigente à época da revolução de 1789 – teve um capítulo especialíssimo naqueles quase três anos de poder dos revolucionários jacobinos. Como nos ensinou Lênin na sua fantástica alegoria para explicar a dialética, expressa na Teoria da Curvatura da Vara, a fase jacobinista empurrou a vara para o lado oposto em que se encontrava a França sob a ditadura da aristocracia rural expressa na dinastia dos “Reis Luises” até 1789. Ao forçar por mudanças ainda mais radicais do que a primeira fase da Revolução havia forjado entre 1789 e 1792, os jacobinos desencadearam contra si todos os ódios – dos monarquistas à grande burguesia endinheirada; dos revolucionários moderados a parcelas do próprio povo ainda condicionado por séculos de dominação ideológica da aristocracia, em especial pelo enorme poder que o catolicismo francês exercia sobre a massa popular. O resultado foi um banho de sangue. O governo revolucionário jacobino buscando defender a revolução e suas medidas radicais, desencadeou enorme perseguição aos que pretendiam retomar o poder – entre os velhos monarquistas e os burgueses moderados que comandaram o país entre 89 e 92.

A França revolucionária era acossada por dentro e por fora, já que uma coalização reacionária armou-se contra ela desde os primeiros dias após o glorioso 14 de Julho de 1789, envolvendo Áustria e Prússia (futura Alemanha), obrigando os jacobinos a agirem em duas frentes: no campo interno, uma enorme repressão aos adversários do seu governo radical; no campo externo, a unidade francesa contra os absolutistas que buscavam invadir o país, destruir a revolução e reempossar a monarquia derrotada. No campo interno, os jacobinos se isolaram politicamente, perderam sustentação popular, abrindo espaço para o golpe de Estado conduzido pelos Girondinos em 1794, que conduziu os líderes jacobinos à guilhotina, extinção do seu governo e cancelamento de boa parte das suas medidas revolucionárias. A “Vara” começava a vergar em direção ao Centro, processo completado pelo longo período de poder configurado no governo de Napoleão Bonaparte (1799-1815). A dialética levou a Revolução Francesa a uma nova síntese: uma sociedade que guardava fortes resquícios da presença aristocrática enquanto implementava todo um arcabouço político-jurídico eminentemente burguês, em permanente disputa entre si. Napoleão, seu governo, o império que comandou, as alianças que estabeleceu para se manter no poder, expressavam essa nova síntese histórica deflagrada em 1789.

As raízes da Comuna

A queda de Napoleão em 1815 abriu uma nova temporada histórica de agudização política na França. De um lado, o terrível período de forte reação da nobreza, reempossada no comando do Estado francês sob a tutela da Inglaterra, Prússia e Rússia (a “Santa Aliança”)  movimento que percorreu praticamente toda a Europa pós extinção do “império de Napoleão”.  A aristocracia europeia tentou varrer os ideais revolucionários em todos os seus aspectos, especialmente nos aspectos ideológicos e políticos. Contudo, com o avanço do capitalismo na França e outras nações,  impulsionado pelo período napoleônico, e o fortalecimento da burguesia industrial por um lado, e a expansão do proletariado fabril, urbano, forjaram em solo francês uma nova configuração social altamente explosiva contra as tentativas da velha nobreza francesa em “fazer girar para trás a roda da história”. A partir de 1830, a França voltaria a ter uma nova onda revolucionária, envolvendo a burguesia e o proletariado contra a nobreza. Essa onda deflagrada em 1830, avançou pela revolução de 1848, movimento que assolou boa parte da Europa e que ficou conhecido como “Primavera dos Povos”.  A “Vara” voltava a vergar, agora, com o forte peso da classe operária fabril, em franco crescimento e fortalecimento, ainda aliada à burguesia, mas já avançando para posições mais ousadas, posições próprias, de defesa dos seus interesses de classe. A Classe ia assumindo a luta para si. Estavam criadas as condições objetivas e subjetivas para a eclosão da Comuna de Paris, apenas 20 anos após a “Primavera” de 1848.

Voz do Povo, Voz de Deus – Ilustração de barricada operária francesa durante as Jornadas de Junho de 1848 | Autor: Gustave Courbet

O proletariado toma os céu de assalto – o duro mas necessário aprendizado

Associada diretamente à derrota francesa na guerra Franco-Prussiana de 1870, resultando em crise econômica, invasão da França e submissão da burguesia ao poderio alemão, bem como pelo caráter reacionário que a burguesia francesa – novamente à frente do Estado – assumiu perante o jovem proletariado após 1848, expresso no declínio do prestígio do imperador Napoleão III, derrubado exatamente pela referida guerra, a Comuna de Paris foi o resultado imediato da rebelião proletária contra a burguesia e em defesa da nação contra a ocupação estrangeira. De novo, como havia ocorrido nos idos de 1792, a invasão estrangeira ao solo pátrio francês colocava as massas urbanas na condição de grande defensora do país, contra a montagem de um governo fantoche sob comando dos prussianos.  Em março de 1871, após meses de intensa tensão, o proletariado parisiense assumia o controle da capital, movimento que duraria até maio, quando a Comuna foi brutalmente massacrada pela aliança entre a grande burguesia francesa e as tropas invasoras prussianas. Afinal, a Comuna, pelo seu caráter proletário, uniu inimigos do campo de batalha, mas ideologicamente afinados naquilo o que efetivamente interessava: a manutenção e expansão do capitalismo e o comando do Estado pela burguesia.

Derrube da coluna Vêndome (1872), xilogravura. O monumento, que simbolizava o poder imperial de Napoleão, foi derrubado em 16 de Maio de 1871

Não há espaço para  fazer um detalhamento dos erros e acertos da Comuna. Mas cumpre destacar que aqueles três meses foram vivenciados por ninguém menos do que Karl Marx, que lá estava e apoiou os Comunardos com fervor. Das experiências da Comuna, da brutalidade que se abateu sobre os revolucionários de 1871 – massacrados impiedosamente pela reação burguesa – das medidas de governo adotadas pelo Comitê Central Revolucionário da Guarda Nacional, Marx extraiu algumas lições fundamentais, expressas principalmente no seu magnífico livro Guerra Civil na França. Algumas das medidas dos revolucionários franceses, calaram fundo em Marx: extinção do trabalho noturno; oficinas que estavam fechadas foram reabertas para que cooperativas fossem instaladas, residências vazias foram desapropriadas e reocupadas; os descontos nos salários foram abolidos; a jornada de trabalho foi reduzida, e chegou-se a propor a jornada de oito horas; sindicatos foram legalizados. Instituiu-se a igualdade entre os sexos; o casamento se tornou gratuito e simplificado; a pena de morte foi abolida; o cargo de juiz se tornou eletivo;  Estado e a Igreja foram separados; a Igreja deixou de ser subvencionada pelo Estado e os espólios sem herdeiros passaram a ser confiscados pelo Estado. A educação se tornou gratuita, secular e compulsória; escolas noturnas foram criadas e todas as escolas passaram a ser de sexo misto. Elegibilidade do parlamento com a revogação do mandato conforme a vontade popular, dentre outras medidas.

A partir da amplitude daquela  experiência viva e concreta que a Comuna foi, Marx desenvolveu ou consolidou novos aspectos para a teoria revolucionária, para o aprofundamento do Socialismo Científico, que desenvolvia em conjunto com Friederich Engels:

  • a) ao proletariado revolucionário, não cabe realizar meras reformas no “Estado Burguês”, mas destruí-lo, construindo um novo Estado, a serviço do proletariado;
  • b) é preciso defender o novo Estado Proletário dos ataques da contrarrevolução;
  • c) o proletariado precisa ser o condutor/controlador do novo Estado, evitando sua auto regulamentação acima da classe;
  • d) é fundamental substituir o exército clássico, pelo povo em armas;
  • e) os mandatos devem ser eletivos e revogáveis a qualquer momento pelo proletariado;
  • f) os salários dos dirigentes do Estado devem estar na média dos salários do próprio proletariado;
  • g) a burocracia estatal não deve ser permanente, sob o risco de se transformar num fim em si mesmo e se autonomizar frente ao proletariado;
  • h) ao Estado Proletário, compete desenvolver a passagem da propriedade privada dos meios de produção para propriedade coletiva, sob comando desse Estado;
  • i) não é possível dar um salto direto de uma formação social a outra completamente diferente: é necessário todo um processo histórico de transição. Portanto, Socialismo será, em síntese, o processo histórico de transição entre o Capitalismo e o Comunismo.

Mais a frente, Lênin retomou muitas dessas ideias no seu célebre livro O Estado e a Revolução escrito às vésperas da revolução socialista liderada por ele na Rússia em 1917 em Outubro/Novembro daquele ano. A Comuna de Paris, foi, em si, na sua derrota massacrante perpetuada pela burguesia francesa em conluio com a burguesia alemã, o fechamento do ciclo aberto pela Primavera dos Povos. Ao mesmo tempo, ela iniciou um novo ciclo histórico: o das revoluções proletárias, que ganharam novo impulso teórico e político, desde as formulações de Marx e Engels nos anos seguintes ao fim da Comuna, bem como nos enormes desdobramentos revolucionários a partir da vitória dos bolcheviques na Rússia em 1917. Um movimento que se estendeu, claramente, até meados do século XX. A “vara da dialética” voltaria a ser curvada. E não tenho dúvidas de que voltará a ser!

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