“A Culpa é de Fidel!”

Filme da francesa Julie Gravas relembra a militância dos anos 70 a partir da visão de uma menina de nove anos e revela conflitos, sonhos e solidariedade no meio da esquerda

Que ninguém se assuste, se durante a exibição de “A Culpa é de Fidel”, da francesa Julie Gravas, for tomado por nostalgia, vontade de retomar pontos históricos, retocar fotografias e ressuscitar entes queridos. E sentir que o título longe de representar a culpabilidade de Fidel Castro lhe presta homenagem, por ser um dos ícones da época de ouro da militância de esquerda, em que “tomar o Palácio de Inverno de assalto” era mais do que uma possibilidade. Os sonhos desbragados estavam nas ruas, nas reuniões e nas passeatas. E, além disso, a utopia deixara de se configurar nas experiências da Revolução Chilena, na Resistência Vietnamita e nos caminhos apontados pela Revolução Cubana. Nada, no entanto, parecia claro, pelo menos aos olhos da garota Anna (Nina Kervel), que na pré-adolescência procurava entender o que se passava ao seu redor e tudo se embaralhava em sua mente.
              



Pois “A Culpa de Fidel” trata, na verdade, é disso: de flashes da história andando em círculos ao redor da garota Anna, numa velocidade tal que, muitas vezes, nem os adultos conseguiam apreender a totalidade das implicações de seus atos. Seu mundo se dividia entre as atribulações de seu cotidiano familiar, as aulas na escola católica e em suas relações com as babás estrangeiras que se sucediam em sua casa sem que ela entendesse porque uma era substituída pela outra. As razões lhes eram explicadas pela metade, considerando sua idade e a complexidade dos fatos nos quais estavam envolvidos o pai, Fernando (Stefano Accorsi), brilhante advogado, e a mãe, Marie (Julie Depardieu), jornalista da revista feminina Marie Claire. E ela, aferrada aos ensinamentos que lhes passavam as freiras, tentava articular uma posição que se chocava com as idéias e as ações de seus pais.


             


 


Mundo de Anna é o dos refugiados do 3º Mundo


              


Como as explicações dos pais lhes eram insuficientes, Anna buscava na empregada cubana, Filomena (Marie-Noelle Bordeaux), razões para as idéias que, em vão, absorve. E a empregada, insatisfeita com as medidas tomadas pela Revolução Cubana, lançava sobre a pobre garota impropérios e clichês sobre o confisco de propriedades em Cuba e culpava Fidel por isto. Mas logo a cubana cedeu espaço à grega Panayotas e uma mudança radical ocorreu em sua vida. A nova empregada lhe passa toda uma cultura, com deuses e mitos substituindo os ensinamentos da Bíblia. Ela, ao contrário de seu irmão François, custa a entender o comportamento humanizado dos deuses gregos, que se contrapõem de modo absoluto ao Deus cristão. E quando ela já se acostumava à visão grega, surge diante dela a vietnamita Mai Lahn, com sua comida recheada de vegetais e uma visão metafórica do comportamento dos animais e seres humanos.
                



Mais do que as concepções materialistas de seus pais, são as elaborações de Filomena, Panayotas e Mai Lahn que contribuem para a visão multifacetada que Anna passa a ter do mundo. Nenhuma delas era empregada na acepção clara da palavra, mas refugiadas políticas, abrigadas em sua casa, devido à militância de esquerda de seus pais. A casa nunca era grande o suficiente para homens e mulheres que nela se abrigavam. Ora eram os barbudos, matizados como homens de Fidel, cativados por seu pai, noutra eram as mulheres, vítimas das mazelas do capitalismo, entrevistadas por sua mãe. Num entra e sai que Anna e François (Benjamim Feuillet) às vezes se sentiam deslocados em sua própria casa. Participavam dos ebulitivos anos 70, rescaldo das explosões da década de 60, sem ter noção de que tomavam parte da história. Principalmente porque se ligavam diretamente, pela militância de seus pais, à resistência ao ditador Franco, na Espanha, e ao apoio ao Governo Salvador Allende, no Chile.
               


 


Filme constrói uma história sensível


               



Qualquer reflexo destes atos na vida de Fernando e Marie influenciariam suas vidas para sempre. Toda a ação levava-os a reagir, a tentar entender ou simplesmente reagir, como o fazia Anna. Ela emudece, resiste, desafia os pais e vai, devagar, pegando os fatos pelas nesgas, até começar a ampliar seus horizontes. A validade de “A Culpa é de Fidel” reside na forma como faz o personagem crescer. Não o faz mudar à maneira hollywoodiana, que a personagem começa ignorante e no fim vira herói. A diretora Julie Gravas, filha do cineasta Costa Gravas (“Estado de Sítio”, “Z”, “A Confissão”), dribla o clichê e constrói uma alternativa positiva, brilhante, cheia de humor e graça. Anna, em sua inocência, confunde fatos, termos, expressões e ajuda o espectador a entender os conceitos da esquerda da época.
                



Às vezes, ela diz coisas como minha avó disse que os comunistas não gostam da gente e querem ficar com a nossa casa. O faz porque ouviu, não por ter equilibrado conteúdos, analisado o quanto de veneno e ódio de classe existe na geração mais velha que a dela. A velha chega a lhe dizer que os comunistas são os trabalhadores, os pobres, gente que busca confiscar a propriedade da classe média e, no caso dela, dos latifundiários. Mas o diz tentando construir uma verdade, pois assim agem realmente segmentos das camadas médias, latifundiários e burgueses, por terem a propriedade como um dos principais núcleos do capitalismo. O mesmo se dá com as freiras, com sua férrea disciplina, ao obrigar as crianças a se erguer quando a freira-professora entra na sala e a se despedir quando a substituta dela sai. São reações mecânicas, por fazer, não algo consciente.


                 



Personagens simpáticos e realistas ajudam a pensar


                 



Este contraponto, feito pela diretora/roteirista, torna “A Culpa de Fidel” um “filme-teia”, com um centro e vários fios, que, ao serem puxados, vão descortinando seus conteúdos. Anna, com suas perguntas sobre política, amizade, solidariedade, comportamento coletivo, aborto e sexo, questiona muito das relações dos militantes de esquerda com seus filhos. Em princípio, são distantes, mandonistas, depois, à medida que ela vai formando suas idéias e clareando suas concepções, suas relações vão se tornando mais estreitas, amigas e respeitosas. Uma crítica que, sem dúvida, pode gerar alguns resmungos, logo substituídos pelo riso, pela aceitação, pois Julie Gravas sabe torna seu filme terno e os personagens simpáticos. Enfim, todos se transformam, principalmente Fernando e Marie, que atraem a filha para seu mundo, enquanto ela vai mudando sua visão sobre eles e sua militância. Até chegar à rejeição à escola católica.
           


 


A cena em que ela entra no pátio de nova escola, devagar, temerosa, diante da ebulição dos colegas pré-adolescentes, brincando, cantando e se fazendo existir, é um forte contraponto à disciplina e a hierarquia do colégio de freiras que deixou para trás. Uma grande seqüência, feita sem manipulação musical.  Julie Gravas repete em outra seqüência, de grande densidade dramática, quando Anna e Françóis fogem de casa após presenciar a briga de seus pais. Atormentados, eles saem pela rua sem rumo, ela segura na mão do irmão, como se o amparasse. Apenas uma “música funcional” marca a seqüência, o que a torna mais exasperante. Logo é substituída por outra ação, que irá revelar a Anna o Chile que ela detesta por lhe tirar a atenção dos pais e trazer para dentro de casa um grupo de barbudos, os mesmos que Filomena dizia que tomaram o poder na Ilha.


            



Enquanto questiona, Ana descobre o Chile


            



A fuga irá tornar Anna outra pessoa, mais ciente de que o mundo não se resumia ao seu apartamento e a fazenda dos avós maternos. Havia pessoas na Espanha, terra de seu pai, no Chile, terra de Allende, além de na Grécia e no Vietnã, todos oprimidos por ditaduras e imperialismo. E ela estava ligada às pessoas que lá moravam mesmo se não quisesse. Essa metamorfose se dá na forma de tomada de consciência, que é, no entanto, contraditória, pela própria razão de Anna ser uma criança. Julie Gravas mostra todo seu temor ao estar numa passeata para a qual foi levada pelos pais. As palavras de ordem, as pernas, os corpos, as cabeças, vistas por ela de baixo, a amedrontam. De repente, na calmaria da manifestação, surge o burburinho que evolui para a fuga, e ela, surpreendida por gritos e correria não sabe como escapar. Há algo que deve ser feito e ela não sabe o quê!
            



Julie Gravas tampouco a deixar se desprender de sua crença, da idéia de que o capital existe para obter lucro. Vai colocando-a diante de contradição em contradição, ouvindo depoimentos de mulheres às voltas com aborto, desaparecimento de grávidas e, enfim, flagrando a decepção do pai pela queda de Allende, em 11 de setembro de 1973. Poder-se-ia ser um rito de passagem, mas não, é a transfiguração de um ser alheio ao mundo que o cerca, ainda que uma criança, à tomada de consciência de que além de participe deste mundo, pode insurgir-se contra ele.  Anna o faz rejeitando a escola das freiras, que insistem nos ensinamentos da Bíblia quando ela já descobriu que existem outras formas de ver as relações sociais. Panayotas e Mai Lahn a ensinaram. Uma lição e tanto que a faz amadurecer, assim como muda a maneira de os pais a tratarem.


            


 


Julie Gravas foge às armadilhas de “Adeus, Lênin”


           



 “A Culpa é de Fidel” confirma que se pode produzir um filme sem as sandices de “Adeus, Lênin” e “A Vida dos Outros” que, a pretexto de denunciar fraturas do Socialismo Real na Alemanha Oriental, durante a Guerra Fria, terminam gerando obras reacionárias e simpáticas ao imperialismo. Julie Gravas não deixa de criticar o machismo de Fernando ao se relacionar com Marie, porém mostrar, em várias seqüências, a solidariedade, a ternura e o desprendimento dos grupos de esquerda nas décadas de 60 e 70, época de grande resistência ao imperialismo e às ditaduras militares. Um brilhante trabalho de quem herdou a verve de seu pai, o grego radicado na França, Constantin Costa-Gravas, para abordagens políticas.
           


 


Em “A Culpa é de Fidel” a luta se processa entre quatro paredes, de maneira suficiente para que ela faça um link com as preocupações, a linguagem e a estética de Buñuel, que punha seus personagens, a exemplo dela, em situações as mais variadas, a partir de um centro irradiador da ação (“O Anjo Exterminador”, “Discreto Charme da Burguesia”). Eles, os personagens, ficam presos a uma situação da qual não conseguem escapar, pois fatos externos os obrigam a permanecer entre quatro paredes até que o que os ameaça se desfaça – se é que o fará. Em “A Culpa é de Fidel” são as ditaduras franquista e grega, o ataque dos EUA ao Vietnã e a chegada de Allende ao poder, no Chile, que fazem com que os militantes destes países e Fernando e Marie permaneçam fechados num apartamento em Paris, buscando saída para a opressão existente a milhares de quilômetros deles.


                



Visão da diretora é otimista e sonhadora


               



Julie Gravas consegue transmitir um frescor, uma visão otimista e sonhadora das possibilidades de transformação político-social difícil de encontrar hoje em meio ao pessimismo geral. O faz centrando a esperança em Anna, uma geração espremida entre os ideais dos anos 60 e 70 e sua própria vivência. É como se ela dissesse: cada um faz a sua parte em seu tempo e de acordo com a sua experiência. Ana o consegue encontrando os de sua geração, ainda que continue umbilicalmente ligada àqueles que lhe abriram o caminho e dela receberam valorosa contribuição. Ela está, de qualquer forma, dando o primeiro passo. A câmera de Julie Gravas a mostra entre dezenas de crianças, numa seqüência elucidativa das carências dos tempos atuais: o de romper com amarras e crenças que, ao invés de libertar, só aprisionam.


 



“A Culpa é de Fidel!” (La faute à Fidel!). França, drama, 99 minutos. Roteiro/direção: Julie Gravas. Elenco: Nina Kervel, Julie Depardieu, Stefano Accorsi.

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