A defesa dos interesses da classe trabalhadora na ordem do dia
É necessário definir com maior clareza a natureza da crise econômica que teve início em meados do ano passado nos EUA e de lá foi irradiada para a União Européia, o Japão, a Inglaterra e outras regiões e países do mundo.
Publicado 04/12/2008 17:45
Neste sentido, é ainda hoje imprescindível recorrer às idéias do pensador alemão Karl Marx sobre as peripécias da produção capitalista. A crise evidenciou a falsidade da ideologia dominante, que não tem mais correspondência com os fatos, especialmente no plano da economia política, e renovou o interesse intelectual pela teoria marxista, que realmente contribui, e muito, para iluminar a realidade atual.
Devemos perceber, em primeiro lugar, que não estamos diante apenas de uma turbulência financeira, ainda que a dimensão dos problemas nesta esfera sejam assustadores. Vivenciamos em todo o mundo uma crise econômica mais global, que abarca tanto a indústria quanto as finanças e seria falso colocar uma muralha da China entre essas duas esferas da economia capitalista. É uma crise daquilo que Karl Marx classificou no passado de processo global de reprodução do capital e da produção capitalista (compreendendo a indústria, o comércio e o sistema financeiro), que eclode com a interrupção da circulação do capital e, conseqüentemente, de sua valorização.
Superprodução
Não é difícil enxergar, subjacente às perturbações econômicas, a ação de fatores clássicos como a pletora ou superprodução de capital-mercadoria e a interrupção do crédito, comuns nas perturbações cíclicas que periodicamente abalam o sistema. O caráter cíclico é dado pelo fato de que a crise sucedeu o último ciclo de recuperação e frágil crescimento do capitalismo americano, que durou apenas sete anos (novembro de 2001 a dezembro de 2007) e esteve concentrado no ramo imobiliário.
Percebe-se claramente a dança da contradição entre o excesso de produção e de capacidade instalada da indústria e a contração dos mercados e do consumo das massas, configurando o fenômeno que Marx classificou de superprodução. Por esta e outras razões, devemos concluir que a crise não é obra exclusiva dos especuladores, tem caráter objetivo e decorre das leis que presidem o processo de produção capitalista.
Socializar prejuízos
É certo que os problemas foram acentuados pela especulação, pela desregulamentação da ordem financeira, pela multiplicação do capital fictício (com a criação de novos e exóticos “produtos” financeiros) e pela liberalização dos mercados. Embora não seja a primeira nem a última crise da história do capitalismo, esta já se configura como a mais global e provavelmente a mais séria desde a 2ª Guerra.
A crescente globalização da crise encontra sua explicação, em boa medida, na importância extraordinária que os mercados norte-americanos ainda possuem para a circulação e valorização do capital em escala internacional, tanto na esfera comercial, através do déficit de mercadorias, quanto na área financeira, com a demanda para satisfazer a escandalosa necessidade de financiamento externo, orçada em cerca de 3 bilhões de dólares por dia.
Ao mesmo tempo em que evidenciou a falsidade do pensamento neoliberal hegemônico no mundo ao longo das últimas décadas, a crise constrangeu a oligarquia financeira a apelar à mão forte do Estado para socializar os prejuízos, o que não chega a ser uma novidade histórica, mas surpreende pela dimensão do socorro que está sendo mobilizado.
Duas crises do capitalismo americano
É importante assinalar que a turbulência econômica caminha de mãos dadas com outra crise do capitalismo americano, que tem um caráter histórico mais amplo, estrutural. Trata-se da crise da hegemonia dos EUA dentro da ordem imperialista mundial, que não eclodiu no ano passado nem estará resolvida ao cabo da atual crise, pois corre ao largo dos dissabores cíclicos do sistema e é determinada por outros fatores. É um processo histórico mais antigo, impulsionado a partir dos anos 1970, que decorre, principalmente, do vício sócio-econômico do parasitismo, cultivado por Tio Sam (fenômeno geralmente negligenciado ou ignorado pelos analistas), assim como do desenvolvimento desigual das nações.
Presenciamos o progressivo deslocamento do eixo dinâmico da produção industrial e do poderio econômico da América para a Ásia e dos EUA para a China. Cabe destacar, também como subproduto do desenvolvimento desigual das nações, a decadência das velhas potências capitalistas reunidas no G-7 e a ascensão, concomitante, das chamadas “economias emergentes”, o que induz a mudanças na diplomacia internacional. A crise da hegemonia americana, traço de grande relevância no contexto histórico, enseja um processo de mudanças e transição na história que, contudo, apenas engatinha; não é um fenômeno exclusivamente econômico, é também político, na medida em que reflete o desgaste da autoridade diplomática dos EUA, e tem repercussões na esfera militar.
Tal é o pano de fundo em que se encena o drama da crise econômica. As duas crises do capitalismo americano guardam diferenças, mas estão interligadas. A crise cíclica está abalando a ordem econômica fundada na hegemonia dos Estados Unidos.
Limites do capitalismo
As crises do ciclo econômico e da hegemonia imperial evidenciam os limites históricos do sistema capitalista e da ordem imperialista internacional fundada na hegemonia dos EUA e nos remetem à necessidade objetiva de sua substituição para contornar o risco de barbárie. Não creio que vamos encontrar, nesta altura da história, saídas definitivas e progressistas para as crises nos marcos do sistema capitalista-imperialista. Esta é uma forte razão para renovar a luta pelo socialismo e por uma nova ordem econômica e política internacional.
Obviamente, não basta, hoje, erguer a bandeira do socialismo e de um novo arranjo da economia mundial. Emergem da crise econômica problemas sociais dramáticos que demandam respostas imediatas da sociedade e dos governos. Embora a crise seja provocada pela ganância do capitalista, que personifica a avidez do capital pelo trabalho excedente e o lucro máximo, a maior vítima da crise não é o grande empresário, o banqueiro, o investidor ou o velhaco especulador.
Tragédia social
Os prejuízos nas altas esferas da sociedade burguesa revelam-se risíveis quando comparados à tragédia social da crise que se abate sobre a classe trabalhadora na forma do desemprego em massa, arrocho dos salários, flexibilização dos direitos e precarização das relações trabalhistas. Para as camadas inferiores da sociedade capitalista, despojada de posses e de meios de produção, exploradas e oprimidas pela lógica da expansão do capital, a crise não raro significa desabrigo, desespero e fome.
A situação da classe trabalhadora nos Estados Unidos e outras economias capitalistas mais desenvolvidas onde uma severa recessão já se instalou é uma ilustração viva disto. Cerca de 1,5 milhão de postos de trabalho já foram destruídos pela crise ao longo deste ano nos EUA. Centenas de milhares perderam o emprego e muitos deles as casas, já não têm onde morar e estão desabrigados.
A crise também discrimina. Elege suas vítimas principalmente nas camadas mais pobres, frágeis e exploradas dos assalariados, que nos países mais ricos é constituída pelas famílias de trabalhadores imigrantes, legais e clandestinos. Assim é que já temos notícias de brasileiros no Japão que estão morando debaixo de pontes e engrossando as filas das sopas beneficentes.
Luta de classes
Na crise transparece com maior nitidez o choque de interesses entre capital e trabalho, que constitui a substância básica da luta de classes da sociedade moderna, associada à luta nacional e antiimperialista pela autodeterminação dos povos. Neste sentido o momento é também oportuno para elevar o protagonismo e reafirmar a centralidade política da classe trabalhadora apregoada pelo marxismo.
Atordoados diante da anarquia dos mercados as classes dominantes abandonam tacitamente o discurso neoliberal e apelam à mão forte do Estado para contornar as dificuldades, reduzir e socializar prejuízos. Os governos, geralmente tão avarentos em relação às demandas populares, frente às quais erguem a barreira da responsabilidade e do bom senso fiscal, canalizam trilhões de dólares em operações de socorro aos bancos e grandes empresas, pouco se importando com o perigo de crise fiscal e de inflação.
Agem, em momentos como este, sem medir conseqüências, na suposição de que os governos podem incorrer impunemente em despesas bilionárias a descoberto, como se a disponibilidade de riquezas que os Estados podem manipular fosse infinita e não dependessem do trabalho e da produção. Suposição falsa, como falso em geral é o pensamento e a ideologia dominante.
Desprezo pelos pobres
Todavia, o governo Bush não demonstrou maior preocupação com os trabalhadores e trabalhadoras que estão perdendo seus empregos e suas casas, de forma que as execuções hipotecárias e as demissões em massa prosseguem diariamente. No Japão, o Estado também destinou centenas de bilhões aos bancos, mas os governantes são indiferentes aos dramas da classe trabalhadora, sobretudo os imigrantes, os desabrigados, os demitidos. Na Europa não é diferente.
A única notícia diferente neste sentido veio sintomaticamente da China, cujo governo, dirigido pelo Partido Comunista, proibiu demissões em massa. As empresas não podem dispensar mais do que 45 pessoas do quadro total de funcionários. O tempo nos dirá sobre a eficácia desta medida, mas certamente ela é distinta, do ponto de vista de classes, daquilo que vem sucedendo nas potências capitalistas, onde a única voz que conta é a que invoca os interesses do capital.
Sombras sobre 2009
Há um amplo consenso de que o Brasil está, hoje, em melhores condições do que no passado para enfrentar a crise, principalmente em função das reservas que acumulou ao longo dos últimos anos, que somam cerca de 200 bilhões de dólares. Isto não quer dizer que a economia nacional ficará incólume.
Os efeitos da crise já se fazem sentir na desvalorização das ações; na interrupção do crédito; na fuga de capitais; na alta, conseqüente, do dólar; no déficit do balanço de pagamentos em outubro; no crescimento do pessimismo entre os industriais; na suspensão de investimentos; na ampliação da capacidade instalada ociosa; na redução dos preços das commodities; na redução das exportações e das importações; na multiplicação das férias coletivas; nas demissões e na queda da produção industrial.
Enfim, são muitos os sinais de que a crise já bateu às nossas portas e é generalizada a impressão de que a desaceleração das atividades é inevitável, embora ninguém se atreva a prever sua dimensão. Certamente 2009 será um ano de muitas sombras e poucas luzes no plano econômico. É hora de intensificar a luta para impedir que a conta seja apresentada ao povo e exigir que os ricos assumam os prejuízos que provocaram.
Valorização do trabalho
Durante pelo menos 25 anos, desde a eclosão da crise da dívida externa no início dos anos 80 do século passado, o Brasil viveu o que alguns economistas classificaram apropriadamente de “crise do desenvolvimento”, com a virtual estagnação da renda per capita e os famosos vôos de galinha. Esta fase crítica do desenvolvimento nacional vinha sendo superada no governo Lula, a partir de 2004, quando voltamos a exibir taxas mais robustas de crescimento e aparentemente sustentadas, embora ainda inferiores à das décadas que precederam a crise da dívida externa. Presenciamos a valorização do salário mínimo e a redução da miséria e das desigualdades sociais, graças às políticas sociais do governo. A atual crise surge como uma séria ameaça à retomada do desenvolvimento e às conquistas sociais obtidas nos últimos anos.
Para enfrentar esse quadro ameaçador o governo Lula tem tomado medidas no sentido de desobstruir o crédito, fortalecer o sistema financeiro público, socorrer os setores em dificuldade, como a indústria automobilística e a construção civil, assim como avançar no processo de integração econômica e política dos países que compõem as Américas do Sul e Latina. O PCdoB tem apoiado essas iniciativas, mas considera que é preciso mais ousadia para enfrentar e superar as vulnerabilidades da economia nacional.
É imperioso defender o desenvolvimento, mas é preciso avançar, simultaneamente, no sentido da bandeira levantada pela 5ª Marcha da Classe Trabalhadora, que será realizada pelas centrais sindicais e os movimentos sociais nesta quarta-feira, 3 de dezembro, em Brasília: desenvolvimento com valorização do trabalho. Não são duas coisas distintas, separadas, pois estão intimamente entrelaçadas. Em oposição à ideologia neoliberal, a valorização do trabalho deve ser percebida como uma fonte de desenvolvimento na medida em que conduz ao fortalecimento do mercado interno.
Direito do trabalho
As forças progressistas precisam cerrar fileiras em defesa do Direito do Trabalho e dos trabalhadores e trabalhadoras, focalizando em particular o direito humano ao emprego. Impõe-se a luta contra as demissões em massa; pela redução da jornada de trabalho sem redução de salários; pela efetiva reforma agrária e fortalecimento da agricultura familiar; pela manutenção da política de valorização do salário mínimo; pela imediata regulamentação do princípio constitucional que impede a demissão imotivada; pela ratificação da Convenção 158 da OIT; pela estabilidade como contrapartida à ajuda direcionada às empresas em crise; pela reforma tributária fundada no princípio da progressividade e da justiça social; e pela retirada dos projetos de Lei que flexibilizam direitos e precarizam as relações trabalhistas em tramitação no Congresso Nacional. Trata-se, em outras palavras, de apoiar as justas reivindicações das centrais e dos movimentos sociais, que encaminharam documentos com este conteúdo ao presidente Lula e outras autoridades.
A este respeito é importante assinalar que o desemprego é ao mesmo tempo efeito e causa da crise, pois o fenômeno amplia o divórcio entre o excesso de produção da indústria e a reduzida capacidade de consumo das massas. Sem salário não se pode pretender que o operário continue consumindo. Caindo a taxa de consumo da classe operária é inevitável agravamento da crise de superprodução. Deste modo, o desemprego originado pela crise transforma-se em sua causa, em seu alimento. Até mesmo por isto, em defesa do desenvolvimento e da economia nacional, é necessário defender o emprego.
Mudanças na macroeconomia
Também é hora de promover mudanças corajosas na política macroeconômica, que ainda mantém certo viés neoliberal. Em primeiro plano, cabe satisfazer o anseio nacional pela redução dos juros. É também conveniente controlar o câmbio e a conta de capitais a fim de alcançar uma estabilidade maior do real, proteger as reservas e prevenir uma crise do balanço de pagamentos, assim como punir a especulação e os especuladores. Com este mesmo objetivo cumpre revisar a lei das remessas de lucros e dividendos para o exterior, que cresceram de forma extraordinária ao longo dos últimos anos, impulsionadas agora pela crise, de forma que constituem, hoje, a principal causa do déficit em conta corrente.
O Estado nacional precisa ser fortalecido, os investimentos públicos devem ser ampliados e as despesas com juros reduzidas. Simultaneamente, é necessário consolidar e aprofundar o processo de integração econômica e política das Américas do Sul e Latina, fortalecendo instituições como o Mercosul, a Alba, a Unasul, criando o Conselho de Defesa da região, o Banco do Sul, avançando na desdolarização das relações comerciais, a exemplo da iniciativa tomada em conjunto por Brasil e Argentina em outubro deste ano.
Com iniciativas desta natureza, sugeridas pelos movimentos sociais, o Brasil estará em melhores condições de proteger a economia e o povo trabalhador dos efeitos perversos da crise do capitalismo e abrir caminho a um novo projeto de desenvolvimento e valorização do trabalho.
Nota
Este artigo foi a intervenção feita no debate sobre a crise promovido em conjunto pelas secretarias de Relações Internacional do PT e PCdoB dia 2 de dezembro na sede nacional do PT.