A foto da menina baleada

Nos últimos dias, o Brasil se viu novamente envolvido em uma discussão tão antiga quanto hipócrita: a redução da maioridade penal e a adoção da pena de morte. Trata-se de temas manipulados pela mídia e pelos interesses que ela representa.

A imensa foto de uma adolescente estirada no chão, com sangue escorrendo das costas decorrente de uma bala disparada durante um tiroteio após um assalto, estampada na capa do jornal Agora — do grupo que edita a Folha de S. Paulo —, na edição do dia 1º de março passado, choca e faz pensar. Quem escreve um artigo sobre violência urbana nessas circunstâncias, obrigatoriamente deve se propor a desenvolver uma opinião a respeito desse tipo de mídia à brasileira. O famoso orador romano Marco Túlio Cícero — para quem uma boa história precisa responder as perguntas quem? (quis/persona), o quê? (quid/factum), onde? (ubi/locus), como? (quem admodum/modus), quando? (quando/tempus), com que meios ou instrumentos? (quibus adminiculis/facultas) e por quê? (cur/causa) — dizia que Roma era um assunto sobre o qual não se devia pedir nem receber informações, a fim de evitar aborrecimentos. Eis aí a definição de como funciona uma ditadura.


 


Recordo a citação para dizer que há uma ditadura de uma casta com a presunção de ignorar a sabedoria humana ao conferir a si própria o título e as credenciais de senhora do bem e do mal, do que convém ou não convém ao país. A foto da menina baleada se insere nesse pressuposto. É uma espécie de Ku-Kux-Klan da falsa moralidade, para a qual a redução da maioridade penal e a adoção da pena de morte salvariam a sociedade. Às vezes fazem isso até em nome das religiões, que do alto dos seus milênios de existência não lhes deram procuração para tanto. Peguemos o exemplo do artigo do doutor em “Psicologia Social” da USP, Antonio Ribeiro de Almeida, publicado no jornal O Estado de S. Paulo no dia 26 de fevereiro passado. “A Igreja Católica, ao longo de sua história, (…) defendeu e defende a pena de morte”, escreveu ele. Segundo o doutor, o papa João Paulo II, no novo catecismo de 11 de outubro de 1992, na bula Fidei Depositum, justifica a aplicação da pena de morte em certas situações. Ele corrige os jornalistas: “O traficante não executa. O traficante, o ‘de menor’, assassina ou mata.”


 


A marca da mídia à brasileira é exatamente a ojeriza ao pensamento avançado, humanista. A cada dia ela nos apresenta exemplos dos mais edificantes, como o dessa foto chocante. E sempre há uma teoria, como a do doutor da USP no artigo do jornal O Estado de S. Paulo. Mas são teorias do que seria-se-fosse, baseadas em características e fenômenos de um país que eles imaginam, muito diverso do país real. Equacionar, operar, extirpar e outros vocábulos os embalam em seus cálculos frios. Os números da violência aparecem em esquemas e equações que não partem de realidades sociais conhecidas. São fantasias e fantasmagorias que não se destinam a descobrir, orientar, provar, mas… Se destinam a que precisamente? A sofismar, a mistificar e mitificar, a ludibriar. Qualquer que seja o problema, por mais complexo e multiforme, não lhes faltam engenho e arte para transformá-lo em gráficos e diagramas para dar-lhe denominação própria e original. Mas não lhe dão especificidade, ou não querem lembrar que informar e analisar requer arte e ciência, essencialmente ligadas ao homem. Nenhum resultado se pode esperar de informações e análises que eliminam o fator humano.


 


Pastel de camarão


 


Nessa pregação pela redução da maioridade penal, o delírio teorizante atinge o auge. Como a presunção é o traço mais evidente dos responsáveis por essas informações e análises, eles insistem no diagramar, no cronogramar, no organogramar, no topogramar para ver se com o inusitado da linguagem obtêm crédito. Pensam que podem vencer pelo choque, pelo cansaço do prolixo. Pode-se dizer que é uma mídia nominalista. Se a realidade — onde coisas e fenômenos estão há muito nominados — não corresponde às análises, muda-se o nome das coisas e fenômenos. Não há desemprego oprimindo os jovens. A desigualdade social não é sinônimo de pobreza. E pobreza num país em que as riquezas não são distribuídas não leva à violência. Enfim: é uma embolada só. Os problemas sociais não são fenômenos da realidade — eles só existem em nós, que insistimos na equalização dos históricos desnivelamentos econômico e cultural. E por isso somos chamados de radicais, atrasados, baderneiros e de outros nomes da pululante adjetivação do dicionário dessa mídia.


 


Saibam os que não sabiam que esse gosto pelo nome dos que se presumem detentores da verdade chega até à limitação da liberdade de opinião. São eles que mandam e acabou a história. De propósito, esses senhores de sua semântica esvaziam o conteúdo das informações para pôr no lugar frases retorcidas. Como alguém lembrou, vazio igual só o daqueles pastéis que a velhinha vendia na feira, apregoando: “Pastéis de camarão!”. O comprador se aproxima, pega um, paga. Na hora de comer, diz: “Mas, minha senhora, não achei camarão nenhum!” Ela responde: “O senhor sabe como é, uns gostam, outros não gostam, uns podem, outros não, por isso não ponho.” Quem come o pastel da “redução da maioridade penal para combater a criminalidade”? Quem gosta de recheio de “bandido bom é bandido morto”? São pastéis de vento, ou vento de pastéis. E como eles inventam nomes com facilidade, suas explicações se encaixam naquele tipo de resposta que se dá às crianças de certa idade que não perguntam para saber, mas pelo perguntar.


 


Não vivemos num Édem


 


Essa dissemântica é velha, mal de nascença. Entre seus princípios acabamos de ver a pregação contra a corrupção. Hoje, passados alguns meses, sabemos que aquela corrupção tinha um limite semântico — o tal “mensalão” — só compreendido por aqueles que o inventaram. Mas para a propaganda contra o governo o nome não poderia ser melhor. E era só isso. Porque se fosse mesmo corrupção naquelas dimensões, no conceito da língua portuguesa, teríamos tido exposições monumentais em praça pública de ladrões cercados de cartazes especificando os crimes de cada um. O que houve ali foi o estardalhaço natural de quem falsifica os fatos — principalmente quando lhe faltam glórias próprias. Muitas vezes essas falsificações são imposições a jornalistas, massacrados pela ditadura dos donos do poder, que sequer têm tempo de estudar as leis e meditar sobre os problemas nacionais, de auscultar o coração do povo, de ler e entender os processos sociais. Muitos nem foram formados neste espírito e, em terra de batráquio, precisam se agachar para não ser atingido pela língua do sapo.


 


Não vamos dizer que vivemos num Édem e que a violência é coisa irrelevante. Os bandidos, lógico, não são anjos. Devem ser duramente castigados. Mas eles têm direitos que estão na Constituição e em outras cartas. E Ruy Barbosa deixou escrito que a Constituição não é roupa que se recorte para ajustá-la às medidas deste ou daquele interesse. Podemos, nesse vazio de inteligência da mídia, nos consolar com as palavras do Padre Vieira, no “Sermão da Sexagésima”, onde se vê a causa de o povo não acreditar nessa pregação recheada de ameaças ou promessas, uma discurseira que põe palavras onde faltam idéias. Lá se diz: “As razões não hão de ser enxertadas, hão de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento. (…) O que sai da boca, pára nos ouvidos, o que nasce do juízo, penetra e convence o entendimento.”


 


Leia também:



Violência em São Paulo: a guerra por trás da guerra
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=2211


 


 


 

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor