A polícia que mata crianças

Os que ousam denunciar os crimes praticados pelas polícias são ameaçados, perseguidos e, em alguns casos, também são mortos

Mizael Fernandes da Silva foi assinado pela Polícia Militar enquanto dormia

Há uma cena forte na minha memória, uma das minhas primeiras lembranças. Eu tinha menos de dez anos, ali pelo início dos anos de 1970, em plena ditadura militar. Na rua onde eu morava havia uma louca, que vez ou outra entrava em crise. Em um domingo, em uma dessas crises, a polícia chegou. Havia um policial na minha cidade muito conhecida pela sua crueldade. Ele arrancou a mulher da sua casa e, depois de despi-la, amarrou-a a um pé de algaroba que havia quase em frente, e surrou-a impiedosamente. Lembro que eu estava dependurado na janela, querendo olhar, e meus pais me fizeram entrar e trancaram as portas de casa, e assim fizeram todos os vizinhos. No terror de então, ninguém ousaria contestar a ação policial.

Aquela cena grudou na minha memória e, não tenho dúvidas, contribuiu para fazer de mim aquilo que sou hoje. O horror ao arbítrio, a repulsa a toda e qualquer forma de tortura, a repulsa ao autoritarismo, começaram a se solidificar em mim naquele dia. Desde àquela tarde de domingo eu estava convencido de que, quando crescesse, precisaria lutar contra aquilo, de todas as formas ao meu alcance.

Quase meio século depois, policiais militares pelo Brasil afora continuam agindo daquela mesma forma ou muito pior. Acho que a polícia nunca matou tanta gente quanto nos últimos anos. Há em vigor uma espécie de licença informal para essa matança. E o pior é que, desde os mais altos escalões da República até os nossos vizinhos e colegas de trabalho, há gente que naturaliza essa matança, que defende os assassinos (que continuam vestindo suas fardas mas não passam de assassinos), que acha natural a morte de inocentes, e de crianças, de muitas crianças que morrem pelas mãos da polícia.

Como há meio século, temos medo de falar. Os que ousam denunciar os crimes praticados pelas polícias são ameaçados, perseguidos e, em alguns casos, também são mortos. Praticamente todos os dias há denúncias de crimes, pelo Brasil inteiro.

Nesta semana me deparei, uma vez mais, com a morte de uma criança. O menino Mizael, de 13 anos, foi morto enquanto dormia, dentro de casa, pela polícia.

No momento em que foi morto Mizael, provavelmente, sonhava com o seu cavalo, com o cavalo que havia ganho poucos dias antes. Mizael queria ser vaqueiro. Sonhava com a liberdade, talvez, com a amplidão da caatinga. Queria correr atrás de bois. Queria correr livre pelo sertão do Ceará. Mizael, provavelmente, sonhava na hora em que foi morto. Havia dormido cedo, pois precisava acordar cedo para trabalhar. Havia dormido com um celular na mão, que havia comprado com o fruto do seu trabalho.

Na madrugada, sem mandado, sem razão, sem motivo algum, policiais invadiram a casa e assassinaram Mizael. Mizael tinha 13 anos, não esqueçamos disso. Mizael era mais um menino trabalhador, não esqueçamos disso. Mizael queria ser vaqueiro, não esqueçamos disso. Mizael era uma criança, uma criança, uma criança, não esqueçamos disso.

Não esqueçamos: mais uma criança foi morta pela polícia militar.

Um menino de 13 anos foi morto por um policial que deveria proteger a sociedade. Precisamos dizer isso em voz alta, ou os assassinos de Mizael permanecerão envergando a farda, batendo, torturando, ameaçando, matando. Quem sabe até sejam condecorados, recebam promoções.

Por isso, precisamos denunciar em voz alta; por isso precisamos dar um basta nessa situação, antes que tenhamos que escrever, daqui a algum tempo, sobre mais um menino sonhador morto pela polícia.

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