A simbologia da condenação à Morte de Saddam Hussein

Como já era absolutamente previsível, o “tribunal” incumbido de “julgar” o presidente constitucional da República Árabe do Iraque, Saddam Hussein, anunciou no último domingo, dia 5 de novembro, a sua condenação à morte por enforcamento.

Trata-se de uma condenação por supostos crimes de “genocídio” contra 148 iraquianos mortos na cidade de Dujail em 1982. O anúncio foi feito pelo “presidente do tribunal”, Taha Yassim Ramadan, que “proferiu” a sua “sentença” tanto a Saddam, como a outros seis dirigentes do Iraque que estariam também envolvidos nesse episódio. Registramos que o período descrito do massacre, ocorreu exatamente quando Saddam era amigo dos americanos, recebia milhões de dólares em armamentos para atacar o vizinho Irã e recebeu em palácio do atual secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, enviado do então presidente Ronald Reagan. Essa era a época dourada das relações iraquianas com os EUA, quando o Iraque era o melhor amigo de Washington.


 


Saddam, que se recusou a levantar para ouvir a sua condenação, prescrita e orientada pelos advogados pagos e orientados pelos Estados Unidos da América e pelo seu presidente George Walker Bush, o filho. Ao contrário, Saddam apenas se levantou para bradar em alta voz e dedo em riste contra a corte de farsantes, as suas palavras de ordem, tais como “Viva o povo do Iraque” e “Vida longa ao povo iraquiano”. A sessão durou apenas 45 minutos, pois se temia manifestações em diversos locais do país, especialmente na região e áreas de maioria sunita. O governo fantoche e títere do xiita Nouri Al-Maliki, que comemorou efusivamente a condenação prevista, havia decretado o toque de recolher em todo o país desde o sábado anterior. E, também como previsto no script, nas regiões xiitas houve comemoração e nas áreas sunitas houve protestos e indignação com a decisão da “corte”.


 


Não podemos nos esquecer que a criação do referido “tribunal” foi feita em 2003, para julgar ex-membros da direção do Partido Baath, no poder com Saddam e membros de seu governo, na época que ainda governava o país o administrador americano, Paul Bremmer II. O primeiro servidor iraquiano-americano a colocar em atividade o referido “tribunal” foi Salém Chalabi. Ele organizou o seu funcionamento, contratou funcionários e estima-se que os Estados Unidos já investiram nessa farsa pelo menos 140 milhões de dólares. É pouco se considerarmos a conta estimado de gastos totais em quase três de ocupação da ordem de 500 bilhões de dólares.


 


O “tribunal” era composto, além de seu presidente, por mais cinco “juízes”. Não houve um júri popular que julgou o presidente iraquiano. Todos esses “juizes” foram treinados e manipulados diretamente pelos americanos, que ofereceram suporte e assistência jurídica integral. Falava-se à época que o melhor seria a criação de um Tribunal Internacional específico para julgar Saddam, sob os auspícios da ONU, nos moldes do que estava sendo feito para “julgar” Milosevic, que acabou falecendo no cárcere. Os americanos não aceitaram essa solução, porque queriam maior velocidade no “julgamento” e na condenação de Saddam, dentro de seu calendário eleitoral ajustado aos seus interesses. Uma verdadeira farsa.


 


Registre-se ainda que o corpo internacional de juristas incumbidos de defender o presidente deposto era composto de mais de dois mil advogados do mundo inteiro e encabeçados pelo ex-procurador geral de justiça dos Estados Unidos, Ramsey Clark, na década de 1960, quando participou do governo democrata de Lindon Johnson. A filha de coronel líbio, Muamar Kadafi, também integrava o comitê internacional. Pelo menos três advogados de defesa foram assassinados e um fugiu (1), sendo que o último deles há poucos meses, por policiais vestidos e uniformizados das forças de segurança oficiais iraquianas.


 


No próprio momento de quando a “sentença” foi proferida, o “juiz” Yassim determinou a expulsão da “corte” de Ramsey Clark, que veementemente protestava contra o cerceamento da defesa. O fato do presidente deposto ter sido julgado pelos seus próprios compatriotas, tirou qualquer idoneidade e isenção da chamada corte superior de justiça do Iraque. O próprio presidente que proferiu a “sentença” de morte, não era o original que foi substituído por não ter conseguido enfrentar o presidente, que sistematicamente lhe apontava o dedo em riste e exigia de ser chamado de presidente da República, constitucionalmente eleito do Iraque.


 


Sabe-se que essas mortes, ocorridas há mais de 24 anos, ocorreram em represálias a um atentado que o presidente Saddam foi vítima, encabeçado pela comunidade xiita. Mas tudo isso é apenas um mero pretexto, pois há outras acusações que pesam contra o presidente iraquiano deposto pelas tropas invasoras e inimigas dos iraquianos em abril de 2003. E mesmo a condenação à morte, a chamada pena capital, que vem sendo banida na maioria dos países do mundo inteiro, foi condenada por alguns governos europeus, mas comemorada pelo defensor da pena de morte, George Bush. E deu isso como exemplo de “maturidade” da democracia iraquiana (sic). Quando foi governador do Texas, Bush foi o governador que mais matou gente na cadeira elétrica e câmara de gás no seu estado e negou todos os pedidos de clemência que lhe foram endereçados. Esse é o chamado novo Iraque que ele estaria querendo construir?


 


Repercussões e desdobramentos


 


O mundo dividiu-se com a decisão da “corte” (e atenção leitores: coloco aspas propositalmente na corte iraquiana, pois pela Convenção de Genebra, uma potência ocupante não é permitida instalar tribunais para julgar governantes destituídos do poder, como é o caso). A União Européia, com a exceção do cão de guarda de Bush nesse continente, Tony Blair, todos os governantes emitiram sinais de descontentamento com a pena capital. A pena de morte na UE esta banida há anos. E vários disseram inclusive que isso em nada ajudaria a aplacar a fúria dos insurgentes, em um país cada vez mais dividido em disputas sectárias e políticas. A própria ONU pediu a imediata suspensão da sentença e sua comutação para no máximo prisão perpetua. A alta comissária para direitos humanos também protestou. Mesmo Blair, acabou tendo que recuar, pois seu país não adota a pena capital.


 


O aspecto mais importante dessa “decisão da corte” iraquiana é que ela foi “proferida” a exatos dois dias das eleições para a Câmara dos Representantes (deputados) e de um terço do senado, onde as pesquisas indicam até o momento que o republicanos perderão a maioria pelo menos na Câmara, mas podem perdê-lo também no senado (escrevo essa coluna antes de saber os resultados das citadas eleições). Ao que tenho conhecimento, os republicanos, mesmo com esse “decisão da corte” iraquiana, devem levar uma bela surras nessas eleições legislativas de meio de mandato presidencial e, ao que tudo indica as sondagens, exatamente pelo amplo descontentamento da população com os rumos da guerra, seus custos políticos e financeiros, o descontentamento mundial contra americanos em todos os continentes.


 


Acho que, mesmo tendo sido planejada dentro de um calendário político e eleitoral elaborado pelos planejadores do pentágono, essa decisão dificilmente poderá ajudar e salvar Bush da derrota e de seu naufrágio eleitoral. O presidente americano tem hoje a sua menor popularidade em seis anos de mandato. Os americanos vem percebendo – antes tarde do que nunca – que foram muitas as mentiras contadas por Bush ao povo estadunidense.


 


O Partido baath, que lidera a insurgência e a oposição aos lacaios que governam sob mando americano, emitiu nota cujo título é enfático e claro: “A vida de Saddam Hussein é a linha que não deve ser cruzada”, alertam os baatistas. E ameaçam com um ultimato: “qualquer dano à saúde de sua excelência, o presidente Saddam Hussein, levará a derradeira resolução da resistência de evitar a retirada e fuga das tropas americanas do Iraque, a não ser como cadáveres embrulhados em sacos plásticos (2).


 


Um dos jornais londrinos de maior respeitabilidade, The Guardian, proferiu em editorial uma posição vigorosa que coloca em dúvida toda e qualquer “justiça” que teria sido feita nesse “julgamento”. E para isso enumera pelo menos os seguintes: nenhum dos juízes e advogados de acusação demonstrou qualquer conhecimento das legislação penas internacional; a administração do tribunal foi completamente caótica; a dependência de testemunhas anônimas reduziu o direito dos acusados de confrontá-las, pois não sabiam que eram; o assassinato de advogados de defesa e a troca política do primeiro juiz, que vinha sendo pressionado por estar sendo por demais “benevolente” com o “réu” (3).


 


De fato, para quem diz querer um novo Iraque, moderno, uma “corte” formada nessas condições, só vai piorar a situação. Se Saddam for mesmo morto por enforcamento (ele pediu para ser fuzilado, mas teve negado o pedido), poderá aplacar momentaneamente a sede de vingança e de mais sangue que determinadas pessoas e grupos políticos no Iraque querem, que clamam por vingança. Mas isso de nada adiantará para acalmar os ânimos. Muito ao contrário. Vai transformar o presidente deposto em verdadeiro herói e mártir, muito mais do que ele já é em vida, com milhões de seguidores.


 


As perspectivas para o Iraque são cada vez mais sombrias. E não só porque as empresas de energia só fornecem luz por apenas seis horas diárias em Bagdá, outrora uma das maiores e mais importantes cidades de todo o mundo árabe. Cada vez mais fica claro o erro histórico cometido por Bush e seus assessores neo-conservadores de direita. Se pudéssemos ter críticas ao modo de governar de Saddam, mais o Iraque era um estado nacional, laico, organizado, que funcionava. Ruim com Saddam, muitíssimo pior sem ele. O país esta hoje fadado ao completo fracasso, ao caos administrativo, a divisão em três partes distintas e guerreando entre si, quase que à beira de uma verdadeira guerra civil.


 


Sabemos como a vida é muito pior no Iraque de agora do que era na época de Saddam. Nunca podemos nos esquecer de quando, dez anos atrás, Madeleine Albright, então embaixadora americana na ONU, quando indagada por Lesley Stahl, da CBS (rede de TV americana), sobre a morte de 500 mil crianças americanas vítimas do bloqueio econômico imposto pelos EUA, aprovado pela ONU ao Iraque e de sua resposta cínica: “sim, achamos que é um preço justo a pagar” (sic) (4). O mesmo ocorre agora. Um cinismo desvairado, fantástico. Os invasores americanos e seus aliados matam mais de 50 mil iraquianos, estupram mulheres, torturam presos, usam balas com radioatividade, humilham os árabes do Iraque e agora “condenam” Saddam por crimes de “genocídio”? Não possuem moral alguma para tratar desse assunto.


 


Quero terminar meu artigo desta semana, fazendo minhas as palavras de outro combativo jornalista e articulista internacional, conhecido do público brasileiro, que é Robert Fisk, do jornal londrino, The Independent, mostrando a sua profunda indignação como londrino e com o seu governo, com os ocidentais e com profunda ironia: “o estranho é que hoje o Iraque esta tomado por assassinos, estupradores e torturadores. Muitos trabalham para o atual governo, que apoiamos. Eles não serão julgados. Nem enforcados. Essa é a extensão de nosso cinismo. Da nossa vergonha. Em algum momento a justiça e a hipocrisia já estiveram unidas de forma tão obscena?” pessoalmente, acho que nunca (5).


 


Notas



(1) As datas e nomes dos advogados assassinados são, pela ordem cronológica: Saadoun Al Janabi, morto em 20 de outubro de 2005; Adel Al Zubeide, morto em 8 de novembro de 2005; Kamis Al Obeidi, morto em 21 de janeiro de 2006. A troca do juiz deu-se com a mudança do curdo Rizgar Amin, em 15 de janeiro, pelo atual. Devemos registrar ainda a denúncia de torturas a que o presidente foi submetido e o abandono de todos os advogados de defesa, pelo cerceamento de seu trabalho em 5 de dezembro de 2005.


(2) Ver artigo no jornal Hora do Povo” com o mesmo título aspeado na matéria, publicado na sua edição de 3 a 7 de novembro de 2006, página 7.


(3) Editorial intitulado “A duvidosa justiça iraquiana”, publicado no jornal O Estado de São Paulo do dia 6 de novembro de 2006, página A13.


(4) Esta referência eu achei no mais recente livro do excelente e combativo escritor paquistanês, radicado em Londres, editor da New Left Review, em seu último livro, ao qual recomendo aos meus leitores, intitulado “A nova face do império”, da editora Ediouro, 2006, página 33-34.


(5) Artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo do dia 6 de novembro de 2006, na página A13, sob o sugestivo título “Um ‘grande dia’ para o Iraque”, com tradução de Paulo Migliacci.

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