A Sombra de Caravaggio 3 – O Revolucionário

Mas ele tinha que sobreviver e queria muito ser reconhecido como artista. Voltou-se para os temas religiosos, que não dominava muito, e pintou o quadro “Repouso na Fuga para o Egito” e “Madalena Arrependida”, também acusados de serem temas “parados”.

Mas… a paisagem do quadro “Repouso na Fuga para o Egito” era muito real, assim como o corpo do anjo que está em frente a José, o carpinteiro, um velho de mãos calejadas e pés descalços muito concretos. O tema da Madalena era comum entre os pintores da época, que usavam como modelos cortesãs apresentadas como se fossem santas. A Madalena de Caravaggio, pelo contrário, “era uma pobre camponesa traída, com uma lágrima pendente no rosto, num quarto escuro e sem mobília”.

Sua visão sobre os assuntos religiosos eram de um leigo, e ele quase não usava as famosas auréolas em torno das cabeças dos santos. Caravaggio não parecia ter alguma formação religiosa. Pelo contrário, Longhi observa que a única coisa que Caravaggio sabia “da condição evangélica era que os apóstolos provinham de gente do povo”.

As primeiras pinturas religiosas que lhes foram encomendas não foram para igrejas, mas para colecionadores privados, que gostavam de enfeitar suas casas com de temas religiosos.
Mas Roma, no dizer de Longhi “a maior fábrica de quadros de altar para toda a Europa”, exigia que ele se voltasse mais ao que o mercado demandava. Deve ter pedido apoio ao cardeal Del Monte, para que ele intercedesse por ele e recebesse encomendas para os altares, o que era uma forma de também torná-lo conhecido.

O primeiro quadro encomendado para uma igreja, a capela Contarelli em San Luigi dei Francesi, “deve ter sido” o “São Mateus e o Anjo”, que ficou pouco tempo no altar da capela, porque não agradou muito. Em sua ignorância das lendas religiosas, ele não sabia, por exemplo, que São Mateus tinha sido um coletor de impostos, e o tratou como se fosse uma pessoa simples, de aparência rude, analfabeto, que franze as rugas diante de um papel escrito “sob a pressão da mão do anjo, rapagão insolente, envolto num lençol de atravessado”, como se fosse a cena de uma peça “sacra de um pequeno teatro paroquial”. Isso por volta de 1592-93. Rejeitado o quadro, o marquês Giustiniani ficou com ele em sua coleção. Essa primeira versão do São Mateus foi perdida em Berlim, na II Guerra, em 1945.

Em todos os quadros de temas religiosos de Caravaggio, surgem em qualquer ponto que se observe do quadro, o pensamento do artista: ele queria ser fiel ao real, e essa fidelidade ele o levava às últimas consequências. Não se importava se fossem criticar, ou mesmo rejeitar seu quadros, mas jamais abria mão de ser verdadeiro.

Longhi exemplifica essa questão em diversos quadros religisosos do artista:

– “Conversão de São Paulo”: uma tempestade é que faz empinar o cavalo que derrubou Saulo, que coloca as mãos nos olhos como se eles tivessem sido feridos pelo raio. Ao fundo, a escuridão das nuvens densas, com uma iluminação fulgurante cortando o céu tão escuro como “um fundo de Géricault ou de Courbet, está um pouco distante da versão bíblica que atribui esse fato a um evento divino.

– “Sacrifício de Isaac”: a paisagem é tranquila “como numa vista italiana de Corot”, diz Longhi. Mas era uma paisagem italiana, dessas que ele pode ter estudado nos arredores de Roma.

– “Ceia em Emaús”: a cena parece ser a de uma taberna comum em Roma: sobre a mesa, uma natureza-morta, as pessoas ao lado de Jesus, pessoas comuns, idosos, sofridos, mal-vestidos. Ele fez duas pinturas desse mesmo tema, em 1602 e depois em 1606.
Sombra e luz

E tudo envolto por alguma obscuridade sempre. Eu me pergunto: o que Caravaggio queria mostrar com isso? Por que essa atração por pintar o contraste tão forte entre sombras muito densas e raios de luz que dão forma aos objetos? Queria ele dizer que o real, esse que a luz desvela, esconde camadas pastosas e quentes de obscuridade que colocam o mundo em equilíbrio entre luz e trevas? Queria ele descrever a obscuridade como um evento tão verdadeiro quanto misterioso e que em pé de igualdade com a face iluminada do mundo faz parte da nossa natureza, inclusive humana? E que não existe gradação de superioridade x inferiodade na verdade do Real? Lembremos que desde a Alta Idade Média a Filosofia se voltava a ensinar aos homens que o mundo espiritual era o mundo luminoso a ser buscado e alcançado; que o mundo terreno, da matéria, era o mundo da obscuridade, do pecado a ser evitado. Havia essa distinção entre o mundo celeste e o terrestre, entre o espiritual e o material, entre a alma e o corpo… Não teria o nosso mestre Caravaggio querido demonstrar que toda aquela forma de ver e ensinar era uma grande balela, que nada está separado de nada, que luz e trevas são parte do nosso mundo? E ele com sua própria vida desregrada, vagabunda, arruaceira, que era capaz de executar uma obra de tão alto nível, não sintetizava em si mesmo tudo o que ele pensava sobre a natureza dos homens?

Por tudo isso também ele foi revolucionário.

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