A sombra de Caravaggio

Em 1601, Caravaggio pintou a “Conversão de São Paulo” e a “Crucificação de São Pedro”, com um realismo chocante, como ele gostava. Em 1602-04, pintou o “Sepultamento de Cristo”, uma tela de 3 por 2 metros, que gerou dúvidas sobre se representava mesmo a crucificação ou o “funeral do chefe de uma tribo de ciganos”.

É preciso entender que ele queria pintar “os seus semelhantes, os iguais, trazendo-os para aquela parcela da humanidade comum que melhor preserva uma autoridade quase imanente dos gestos e dos sentimentos, mesmo nos momentos mais extremos”.

Um antigo biógrafo criticava-o dizendo que Caravaggio não sabia fazer retratos parecidos com seus modelos. Ele nem ligava. Pintava como achava que era pra ser pintado, sempre preocupado com a luz. Entre 1604 e 1605 se dedica a pintar a Nossa Senhora do Loreto. E ele pintou, mais uma vez recorrendo ao seus iguais: pintou “um homem e uma mulher do povo, peregrinos dos mais simples que chegando ao fim da longa jornada, têm a sorte de encontrar a Virgem que, saindo de casa e detendo-se por um instante em atenção a eles, encosta-se no antigo umbral da porta.” Mais uma vez ele perturbou os defensores dos costumes da época, de uma forma quase “insuportável”. O alarido em torno da pintura foi grande e diz-se que pessoas do povo também entraram na polêmica, aplaudindo o pintor e o fato de se verem colocados sobre o altar.

Em 1605, o monsenhor De Massini encomendou um “Ecce Homo” a três pintores: Caravaggio, Cigoli e Passignano. Acabou escolhendo a obra de Cigoli. Mais uma vez, porque não dava para aceitar o que o pintor “maldito” fizera: prevendo que o padre não ia escolher seu quadro, Caravaggio pintou o próprio rosto, carregado de mal humor, no rosto do “Ecce Homo”.

Mais uma encomenda, mais uma censura: a Nossa Senhora com a serpente para o altar dos Palafraneiros, na basílica de São Pedro. Sua Sant’Ana, no quadro, é uma velha camponesa; a Mãe tem a manga arregaçada, como se fosse “uma lavadeira”; o Menino “nu como Deus o criou” ajuda a mãe a esmagar a cabeça da serpente pondo seu pé em cima do dela. Giovan Pietro Bellori, um de seus biógrafos da época diz que ele tinha “retratado vilmente a Virgem com Jesus menino desnudo”.

E não parava por aí. Meses depois, pintou a “Morte da Virgem” para a capela do advogado Cherubini em Santa Maria della Scala in Travestere, que foi imediatamente retirada de lá pelos padres. Roberto Longhi observa que esse quadro foi salvo pouco tempo depois pelo próprio Peter Paul Rubens, o pintor flamengo, que o enviou para fora de Roma e chegou a expô-lo publicamente. Mas por que os padres não aceitaram o quadro? Pelo simples fato de que ele pintou no rosto da Virgem o rosto de uma cortesã que ele amava… Seus biógrafos questionavam por que ele tinha “pintado com pouco decoro Nossa Senhora inchada e com as pernas descobertas?”; “Por que ter imitado em demasia uma Senhora morta inchada?”. “Na realidade, o quadro parece mostrar os lamentos pela morte de uma plebeia da periferia, no quartinho de aluguel, separado no máximo pelo toldo sanguíneo que pende das traves do teto, e sem outras peças além de uma cama, uma cadeira e a bacia para os lenços molhados. Quase uma cena de albergue noturno”.

O assassinato e a fuga

Com isso tudo, sua vida ia se tornando mais difícil. Ele via suas maiores obras sendo recusadas uma a uma, enquanto seus rivais eram premiados. Nessa época, ainda por cima, sofreu mais um processo por agressão. Enquanto isso pintou o “São Jerônimo escrevendo”: “Enquanto escreve um fúnebre paralelo entre o seu próprio crânio calvo e a caveira que, no lado oposto, figura como ‘natureza-morta’” junto com velhos livros e uma toalha que pende da mesa de qualquer jeito”, descreve Longhi.

Sobre o assassinato cometido por Caravaggio, Roberto Longhi transcreve no livro alguns relatos da época: “Em 29 de maio de 1606, “em Campo Marzio (…) noite de domingo, uma disputa bastante notável com quatro de cada lado”, sendo chefe de um dos grupos “um tal Ranuccio da Terani” que foi morto depois de uma discussão com Michelangelo da Caravaggio “pintor de certa fama em nossos dias, que dizem que ficou ferido, mas não se encontra onde quer que seja”. Um amigo dele, Antonio de Bologna, ficou ferido e foi preso. A causa da briga foram questões de jogo e “de dez escudos que o morto tinha ganhado do pintor”, conta uma notícia enviada de Roma à corte de Urbino, e está registrada na biblioteca do Vaticano.

Caravaggio teve que fugir porque havia um decreto que o ameaçava pelo assassinato cometido. Fugindo de cidade em cidade, acabou indo para Nápoles, chegando lá no outono de 1606. Passou por Nápoles durante dois perídos: em 1606 e 1607 e depois em 1609 e 1610.

Na sua primeira estada em Nápoles, pintou a “Nossa Senhora do Rosário” sob sobressalto, porque ele levou para a “sacristia dos padres inquisidores os pedintes mais extraordinários e perfeitos (parecidos com os que serviram a Velázquez para os seus Borrachos), e os arranjou de joelhos, inocentes, com os pés sujos, os braços estendidos, os dedos colados, entre os mais tétricos e patéticos dominicanos (…) no gesto de implorar aqueles pobres amuletos (terços de osso) contra as misérias do seu destino”.

O quadro foi visto à venda em setembro de 1607 em Nápoles, mas logo chegaria à Bélgica e de novo Rubens interviria em favor de Caravaggio, enviando o quadro para a igreja dos Dominicanos de Antuérpia.

Caravaggio resolveu ir para Malta, atrás de uma “cruz de obediência”. Mas lá também pintou alguns quadros, como o “Cupido Adormecido” e outro “São Jerônimo” (1608). No dia 14 de julho de 1608 ele recebeu a cruz de cavaleiro, mas se desentendeu com um oficial de justiça e vai preso por isso. Fugiu da prisão no dia 6 de outubro e foi em direção à Sicília.

Voltou a pintar, desta vez entre os sobressaltos da perseguição dos malteses. O autor do livro “Caravaggio” diz que esses quadros do período siciliano “não trazem senão novos acréscimos à arte”, mas estão muito degradados atualmente, pelas diversas restaurações que tiveram que passar. Fez mais uma inovação, inédita na Itália: diminuiu a medida dos homens em relação ao espaço “sombreados por paredes gigantescas”, que Roberto Longhi diz que era a preparação do caminho paraas futuras “gravuras de Rembrandt”.

Em 1609 voltou a Nápoles, mas foi encontrado “pelos emissários do seu rival maltês” e foi espancado brutalmente. Segundo Giovanni Baglione ele ficou tão desfigurado “que quase não se reconhecia mais por causa dos golpes”. Mas logo se pôs a trabalhar, como sempre fazia, e produziu a Salomé e um Cristo que foi perdido no terremoto de 1805.

Enquanto isso, foi revogado o decreto que pesava sobre ele. Voltando de Nápoles para Roma resolveu ir pelo mar, passando por Port’Ercole. No desembarque, foi confundido com um malfeitor espanhol e detido, mas logo liberado. Mas perdeu seus pertences, que ficaram na embarcação. Sem destino, vagando pela região, foi acometido pela malária.

Morreu de febre em 18 de julho de 1610, sendo enterrado “ali por perto”, segundo seu biógrafo e seguidor Giovane Baglione.

Assim foi a vida e a obra de um homem que mudou os rumos da pintura e influenciou grandes mestres pelo mundo a fora…

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