A tragédia do Rio Grande do Sul: desastre natural ou social?

A tragédia no Rio Grande do Sul expõe desigualdades: fenômeno natural transforma-se em desastre social ao afetar comunidades vulneráveis.

Chuvas no Rio Grande do Sul, em maio de 2024 | Foto: Lauro Alves/Secom

Segundo o dicionário Houaiss, desastre é um “evento, acontecimento que causa sofrimento e grande prejuízo (físico, moral, material, emocional)”. Já um fenômeno, segundo o mesmo dicionário, é “tudo que se observa na natureza”. Portanto, para que um fenômeno, como uma enchente, provocada por outro fenômeno, um elevado volume de chuvas em um curto período, transforme-se em um desastre, é preciso que cause sofrimento e prejuízo aos seres humanos. Ou seja, o fenômeno que ocorreu no Rio de Grande do Sul durante o último mês de maio apenas se transformou em um desastre porque afetou os seres humanos. Não fosse isso seria apenas um fenômeno como outro qualquer, como a erupção de um vulcão no fundo do oceano, ou uma estrela que é engolida por um buraco negro em uma galáxia distante.

O que ocorreu no Rio Grande do Sul foi um desastre, sem a menor sombra de dúvida, pelo grau de sofrimento e prejuízo que causou a centenas de milhares de pessoas, mas chamá-lo de “natural” nos remete à ideia de que é algo que não teria como ser evitado, o que não é necessariamente verdadeiro. Desse ponto de vista, não existe “desastre natural”, uma vez que para ser desastre necessariamente tem que ter uma dimensão social ou humana.

Quem viu, pelo noticiário, o drama vivido pelas pessoas nas centenas de cidades afetadas, pode observar que a maioria esmagadora das atingidas mais duramente pela enchente são pobres. Isso era mais do que evidente pelas características dos imóveis, dos bairros mais atingidos e das famílias nos abrigos provisórios.

E isso, obviamente, não é algo restrito ao que ocorreu neste ano no Rio Grande do Sul. Basta olhar o que aconteceu recentemente em Petrópolis, no Rio de Janeiro, em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, em Belo Horizonte, no Jardim Pantanal, na zona leste de São Paulo. E até mesmo em New Orleans, nos Estados Unidos, em 2005.

No caso do Brasil e das cidades brasileiras é fácil constatar que um padrão de ocupação urbana se repete de forma recorrente há séculos: os mais ricos ocupam as áreas mais seguras das cidades, em geral localizações mais altas, mais planas, com melhor infraestrutura, com casas projetadas por engenheiros, respeitando as normas de segurança, enquanto aos pobres restam as encostas de morros, os fundos de vale, as beiras de córregos e regiões alagáveis em casas ou barracos feitos com base na autoconstrução com pouco ou nenhuma infraestrutura.

Tomemos o caso de São Paulo. Quem se der ao trabalho de estudar o processo de urbanização da cidade, vai notar que os bairros e comunidades periféricas, onde prevalece a autoconstrução, a ocupação de encostas e fundos de vale e onde geralmente ocorrem os desastres decorrentes de fenômenos naturais como chuvas e enchentes, não foram o resultado da expansão natural da cidade a partir de um centro que foi se expandindo, mas nasceram simultaneamente com o próprio centro.

Isso ocorreu porque, deliberadamente, escolheu-se um modelo de urbanização que barateasse o custo de reprodução da mão de obra para o capitalismo nascente da futura metrópole. Como os salários pagos precisam necessariamente cobrir as despesas de sobrevivência dos trabalhadores, o que inclui, além da alimentação, a moradia, esses loteamentos periféricos, totalmente desregulados, sem nenhuma infraestrutura, sem nenhum planejamento urbano, sem áreas de lazer, sem praças, sem árvores, sem escolas ou hospitais, com casas baseadas na autoconstrução (as famosas feijoadas de domingo com vizinhança para “encher laje”) nasceram com o próprio capitalismo na cidade, pois era uma forma de reduzir o custo da mão de obra para nossa indústria nascente.

Enquanto as primeiras levas de operários urbanos, aqui chegados pelas ondas de migração do Nordeste ou do próprio interior de São Paulo, foram sendo alojados nos rincões da cidade como São Miguel Paulista, Penha de França, Mooca, Sapopemba, Cidade Tiradentes, Freguesia do Ó, Brasilândia, Pirituba, Cachoerinha, Casa Verde, Campo Limpo Paulista, Capão Redondo, Cidade Ademar, o Jaçanã de Adoniran Barbosa, a burguesia nascente foi ocupando a Avenida Paulista, Higienópolis, Campos Elísios, Pacaembu e os Jardins.

Por que São Paulo não tem uma rede decente de Metros até hoje? por conta desse modelo de urbanização: colocar os pobres morando longe do centro, onde o custo de reprodução da mão de obra é mais baixo por conta do custo do terreno e da autoconstrução e transportá-los por longos trajetos de ônibus até o centro ou aos bairros fabris. Faxineiras e porteiros nos prédios dos Jardins, do Itaim Bibi, da Faria Lima, precisam se levantar às quatro da manhã, nos rincões da Zona Sul de São Paulo, tomar dois ônibus em trajeto de até duas horas ou mais para entrar no trabalho às sete da manhã, sair às cinco da tarde, para chegar em casa às oito meia da noite de segunda-feira a sexta-feira. E diriam alguns: graças a Deus que têm emprego.

Falar, portanto, em desastre natural quando ocorrem situações como essa de Porto Alegre e outras cidades do Rio Grande Sul escamoteia questões sobre as quais não gostamos de pensar muito. Na verdade, não se trata de desastres naturais, mas, na maioria esmagadora das vezes e dos casos, de desastres sociais. Talvez aqueles que estão tão preocupados com as mudanças climáticas deveriam pensar um pouco mais nas mudanças sociais que precisamos fazer para evitar que esses desastres se repitam todos os anos. Fenômenos naturais sempre teremos entre vós, mas os desastres sociais provocados por eles podem ser perfeitamente evitados.

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