A vaquejada tradicional é diversão que não maltrata os animais
Exibição de vaqueiro e festa de fazendeiro, de ano em ano
Publicado 30/03/2011 00:39
Amo cavalgar, tanger boi pro curral, tocar boiada e aprecio vaquejada – prazeres da vida simples de cultura vaqueira, do tipo franguinho na panela: "Eu tenho um burrinho preto/ Bão de arado e bão de sela/ Pro leitinho das crianças/ A vaquinha cinderela/ Galinhada no terreiro/ Papagaio tagarela…".
Ao escrever sou inundada por uma explosão de saudade de quando a vaquejada era só brincadeira anual nos pátios das fazendas: exibição de vaqueiro e festa de fazendeiro.
A "pega de bezerro", ou "pega de boi", nos anos 1970, no meu sertão natal, virou vaquejada: um esporte, fora da apartação de gado, como atração nas exposições agropecuárias: imitando o rodeio, mimetizando o estilo country estadunidense e os clichês da filmografia western, com distorções que renegam a vaqueirice. Hoje é esporte rentável, que atrai multidões, mas de reputação polêmica, devido às acusações de maus-tratos a bois e cavalos.
Sem falar na confusão entre vaquejada e rodeio constante em lei – "Entende-se como prova de rodeios as montarias em bovinos e equinos, as vaquejadas e provas de laço, promovidas por entidades públicas ou privadas, além de outras atividades dessa prática esportiva" – que dividiu a atividade vaqueira tradicional em duas: peão de boiadeiro (trabalhador rural: empregado que cuida e treina cavalos e bois) e peão de rodeio (atleta profissional).
A "pega de bezerro" era no dia da apartação, prática da pecuária extensiva, antes da chegada do arame farpado (por volta de 1940, embora inventado em 1873, em Illinois, EUA). O vaqueiro ia "pegar o gado" que pastava solto nas capoeiras, onde gados de vários donos se misturavam. Uma labuta de dias e dias. O vaqueiro não era assalariado. Tinha parte na bezerrada que nascia entre uma apartação e outra, logo tinha "olho de dono", de amor aos bichos e não maltratava seus animais. Os vaqueiros das redondezas se juntavam para ajudar um colega de ofício a receber a parte que lhe tocava.
Após a "partilha", os vaqueiros brincavam de "pegar bezerro". Era uma celebração. Na pecuária extensiva, muitas vacas davam cria no mato, então a bezerrada era selvagem e de difícil captura, exigindo maestria do vaqueiro para enfrentar a caatinga, o cerrado, o carrasco ou a mata fechada, perseguindo e laçando a "bezerrama" para prendê-la no curral. Era uma epopeia! Muitos vaqueiros viravam lendas ambulantes do sertão, inspirando as vaquejadas como diversão: exibição de vaqueiro e festa de fazendeiro, de ano em ano, com comilança, violeiro e sanfoneiro.
O vaqueiro escolhia sua parte no "dois pra uma": dois machos e uma fêmea. Meu avô Braulino ferrava uma "garrota" pé-duro, hoje em extinção, para cada neto que nascia. Dizia que era uma "sementinha de gado". Meu ferro de gado era MF, de Maria de Fátima. Numa partilha, Dé, o vaqueiro, escolheu uma cria da minha vaca Margarida. Aprontei a maior choradeira. Neta mimada e no dizer de vovó, com ar de recriminação, "cheia de gostos" – e era! -, na porteira do curral só bebia leite mungido de minhas vacas.
De certeza uma menina puro entojo, como dizia a tia Lô. Resumo da ópera: o pai velho deu dois bezerros ao Dé pela minha bezerrinha.
Hoje registro uma promessa ao compadre Dé (sou madrinha de um filho seu) e ao pai velho, que, tementes a Deus, decerto estão aboiando e laçando bezerro no céu: volto aos circuitos das vaquejadas pelo resgate da vaqueirice, uma cultura que não maltrata animais, e pela preservação do gado pé-duro, um patrimônio genético do Brasil.