“Achados e Perdidos”: Perdidos no submundo

Em tom pessimista, diretor José Joffily desce ao submundo do Rio de Janeiro, onde os seres humanos perderam a perspectiva de viver

A transposição de uma realidade social para outra é sempre problemática. Implica em adaptar estruturas e relações que muitas vezes não correspondem às do país de origem. Os matizes históricos são sempre diferentes. Surgido nos anos 40, em meio à Segunda Guerra Mundial, o film noir é um gênero tipicamente americano. Mexe com a psique, a memória e as zonas obscuras em que se movem os personagens. Está vinculado aos conflitos duais entre capitalismo e socialismo, típicos daquela época, em as pessoas se sentiam frágeis diante da ameaça que se anunciava, a partir da propaganda americana que demonizava a União Soviética. E, embora, seus personagens – do film noir – se movimentassem no submundo ou fossem dominados pelos baixos instintos, a implicação político-ideológica se impunha.
      
Assim, ao depararmos com o filme, “Achados e Perdidos”, do brasileiro José Joffily (“Dois Perdidos Numa Noite Suja”), percebemos o esforço feito a partir do livro de Luiz Alfredo Garcia-Roza, para manter a estrutura noir, mas transpô-la para a realidade local. Com ação centrada numa irreconhecível Rio de Janeiro, sem praias ou pontos turísticos, mas com ruas povoadas de notívagos, cheiro fétido de becos e boites baratas, personagens decadentes e uma trama cheia de casos intricados. Mas preserva as mulheres fatais, prisioneiras de um passado que não revelam, ambições desmedidas por dinheiro, subterfúgios  para sobreviver, inclusive, ao vício das drogas, que lhes roubam o único patrimônio que têm para sobreviver: a beleza, a sensualidade e o frescor da idade. Às voltas com elas está o homem/decadente que, envolvido nos odores do álcool e do tabaco, consegue diferenciá-las, vendo nelas pureza e erotismo suficiente para mantê-lo vivo.

         
Vítimas das circunstâncias

         
A diferença entre o noir nacional e o americano está na tipificação dos personagens. Enquanto os personagens do noir americano estão presos às armadilhas das relações pessoais e, às vezes, sociais,guardam um quê de inocência e pureza, provando depois que são vítimas de circunstâncias, os do noir nacional mostram-se culpados desde o início. As circunstâncias não são aleatórias; há sempre algo de podre envolvendo-os, pois as estruturas sociais não mais possibilitam sua redenção; criam párias e seres decaídos em série. São, sem meias tintas, sanguessugas permanentes do Estado. Há nessa visão muito do pessimismo que impera no país hoje, principalmente na classe média, na pequena burguesia e em segmentos da intelectualidade.
        
Sente-se que a pureza se esvaiu, como se a preservação de valores, ética e moralmente falando, fosse possível nos limites da estrutura burguesa neoliberal. Limites que embutem também visões do pecado, da devassidão e luxúria; típico pensamento cristão, desalojado numa sociedade que mercantiliza todas suas ações – das do espírito às materiais. Nada na vida do ex-delegado Vieira (Antônio Fagundes) guarda qualquer relação com valores éticos e morais, ele já não os tem. Só procura sobreviver, beber, dormir, fumar e deixar-se levar, entre uma promessa e outra de amor durante sua convivência amorosa com a prostituta Magali (Zezé Polessa). Seu passado o aprisionou de tal forma que ele o arrasta em suas caminhadas pelas ruas de uma Rio de Janeiro sombria, habitada por vultos e prostitutas. E se agrava ainda mais, quando tem de descobrir quem levou para sempre o único ser que ainda o mantinha vivo.

          
Espaço infestado por seres decaídos

          
Magali deixa-se apaixonar, envolver, mas guarda a distância necessária das promessas do amado, para não ter ilusões. Está por demais presa a seu mundo, às sombras, ao cheiro da cama onde recebe uma sucessão de homens dos quais não guarda nem o rosto nem o peso do corpo. Seu contraponto é a jovem Flor (Juliana Knust), ainda cheia de vida, de ambições, para não naufragar. Ela sabe transitar em relações dúbias, usar sua sensualidade, seu corpo, para atrair Vieira. Desencantado, carente, ele se deixa cativar, mas seu mundo não lhe deixa saídas; está dominado pela desconfiança, a busca incessante por quem levou seu bem precioso. É esta busca que o levará ao impasse. Não sem antes perambular por outro lado do inferno – as ruas infestadas de seres decaídos, as boites onde pode se materializar, de repente, Monteiro (Genézio de Barros), figura de seu passado, e o levar de volta ao que tenta esquecer.
             
Em “Achados e Perdidos” não é a trama, com suas várias nuances, que o magnetiza o espectador. São os personagens, na exata tradição do noir: a história é boa, mas os personagens a carregam nas costas, com suas ambições e desilusões. Numa das melhores cenas do filme, Vanessa (Malu Galli), descartada companheira de boite de Júlia e Magali, impregna o ar de decadência. Mostra o quanto o ser humano pode descer ao mais baixo degrau e chafurdar na lama. Ela se oferece para Vieira: cem reais por momentos de sexo, e vai baixando o preço até a degradação total. E lhe oferece a chave para o que ele tenta decifrar. Eles se deslocam para outro espaço e nele se vê o quanto ela podia ainda decair. Desmaia, tragada pela sensação de prazer que o alheamento, a entrega ao vício lhe permite. Não há exaltação da droga, pelo contrário, mostra o quanto ela é perniciosa, sem moralismo algum.

               
Filme não glamouriza o mundo das drogas

               
A droga em “Achados e Perdidos” não tem glamour algum, não ajuda em nada. Só mostra o quanto se pode decair sendo dela dependente. Não há o delírio, o prazer, a liberação. Só a dor. Ainda mais para alguém que se encontra a poucos centímetros do nível do chão. E “Achados e Perdidos” ainda acrescenta outro elemento a esta visão pouco lisonjeira do momento histórico presente. Mergulha nos casos de corrupção na polícia, no judiciário e no meio político. Estão ali os personagens presentes em nosso cotidiano. Do delegado corrupto e vinculado ao crime organizado, ao juiz que organiza a própria forma de se livrar dos indesejados, sejam eles bandidos ou lideranças que lutam pela reforma agrária, ou o político que tenta se apropriar das frestas abertas pela fragilidade das instituições. O próprio Vieira apresenta-se como vítima e algoz, em algo que atesta sua culpa.
               

Nada irá permitir que ele saia para a luz. Há momentos em que ele vacila e aponta a arma para a própria cabeça. Viver para ele tornou-se um fardo. Joffilt/Garcia-Roza, com esta visão, levam o espectador a pensar que não há saída para seres humanos nestas circunstâncias. Nem se torce por eles. Espera-se só que eles reajam. Pouco importa como irão fazê-lo. A arte, quando pessimista, contribui, muitas vezes, para pensarmos no quanto devemos nos manter acima do nível do chão, e o quanto temos de lutar para mudar esse tipo de situação e a estrutura que contribui para sua existência. Isto por mais que saiámos do cinema com a sensação de fel na boca, de gosma presa no corpo. E, ao contrário do que se poderia pensar, o happy-end à Hollywood pode ser, na maioria das vezes, reacionário. O herói pode vencer lutando do lado errado, conservando padrões e estruturas conservadoras, como sempre acontece nos filmes americanos.

                
Um triângulo amoroso inusitado
                
Em “Achados e Perdidos”, Vieira, o anti-herói, consegue a redenção não pela forma como se dá o desfecho do filme, aliás insatisfatório. Mas pela visão do processo que viveu antes. Quer sair para a luz de forma certa e o faz. Não há ênfase, porém, neste aspecto. Joffily eGarcia-Roza preferiram centrar o filme no inusitado triângulo amoroso, formado por Vieira/Magali/Flor, na culpa, na ambição pelo dinheiro e no erotismo. As ações, porém, se interpenetram, não permitindo que o subtema não tenha a força necessária para o entendimento do dilema vivido por Vieira e sua falta de opção. Principalmente, porque ele não consegue dar vazão à liberdade que poderia lhe tirar das sombras, preso que está à culpabilidade, que não lhe permite usufruir do dinheiro que obteve numa de suas ações criminosas. Há todo momento a mala cheia de dólares se apresenta, como se a lembrá-lo de seu passado. E deste ele não consegue se livrar nem quando descobre quem lhe tirou o ser mais precioso para a sua vida.
              
“Achados e Perdidos” vale não só pela forma como trata o noir, mas também pelos atores que se despem de todo glamour, do clean que as novelas da Rede Globo lhes dão. Antônio Fagundes, como Vieira, está pesado, obeso, lento e envelhecido, contribuindo para o clima obscuro da trama e o perfil decadente de seu personagem. Surpreendente é Zezé Polessa, como Magali, é outra atriz, mais densa, sofrida, do que normalmente nos acostumamos a vê-la; e a jovem Juliana Knust, entregue sempre a papéis superficiais que não a prenunciam como boa atriz, destaca-se como Flor, a prostituta que tenta atrair o experiente Vieira para suas armadilhas. Mas é Malu Galli, como Vanessa, que simboliza toda a carga do submundo, com seu riso e olhar desconfiado, invejoso, cínico e, por que não, maligno. São dela os momentos intrigantes e realistas do filme. Não é um personagem de cinema, mas da vida real. Enfim, são os atores o que de mais gratificante há em “Achados e Perdidos”, embora seja um filme que nos faz temer o momento histórico que vivemos.

Achados e Perdidos, Brasil, 2006, 100 minutos. Direção: José Joffily. Roteiro: Paulo Halm, baseado na novela de Luiz Alfredo Garcia-Roza.Direção: José Joffily. Elenco: Antônio Fagundes, Zezé Polessa, Juliana Knust, Genézio de Barros, Malu Galli.       

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