Aconteceu no ano novo

Dois traços distinguem Hosana de outras moças de sua idade: é magra feito um caniço e tem um riso idiota; ri à toa, feito um cretino de rua.

O nome que a mãe escolhera para o batismo e lavratura da certidão no cartório, deu-se por ela ter nascido num domingo de Ramos; o que não impediu de, aos quatorze anos, deixar-se deflorar sem tirar da boca larga o mesmo sorriso idiota. Acredita-se que tenha deixado escapar tão somente um gemido vago, para logo mostrar-se idiota ouvindo o sussurro oportunista do parceiro. Até hoje não se sabe o nome do autor. Às insistentes perguntas sobre quem teria sido o colega de classe que a levara para o matagal atrás do muro da escola, respondeu como se tivesse ouvido uma zombaria banal; mais ainda quando lhe apontavam para os amassos, as manchas de terra e os fios de capim acima e abaixo da saia azul-marinho. Hosana não sustentou a prenhez, abortou sem ter a noção da perda. Às raspagens na vagina reagiu com paciência cretina; em seguida, ergueu-se da cama com algum esforço, esboçando um sorriso torto até tornar-se idiota de vez.

Encontramo-la agora na noite do Ano Novo. O sorriso, de tanto ser visto, tornou-se monótono, um berloque sem graça no rosto de bochechas salientes. A mãe é cozinheira de uma família de posses médias; tem a confiança de todos da casa. O sentimento é um espólio medíocre. Hosana recebeu o seu quinhão, guarda-o não como uma ninharia do coração, mas como uma almofada que conforta e relaxa seu tronco comprido.

A mãe, findo os preparativos para a noite festiva, seguiu para casa. Deixou a filha por saber que se agregaria sem esforço ao séquito das netas da matriarca da casa, e para assegurar que nem tão cedo o espectro de sua faina sumirá do bangalô à beira-mar.

Primeiro Hosana acomodou-se no assento comprido de cimento de uma ponta a outra do terraço. Fingindo entender tudo o que ouvia da boca dos comensais, ri molemente, sem se descuidar do próprio perfil. Logo tem a companhia das três netas da velha longeva. Seguiu, com prazer nas pernas e os braços soltos, para a areia da beira do mar. Atrás das outras, como convém a uma agregada; conversando pouco, os olhos fartos de cumplicidade.

Onze da noite, a ceia é posta na mesa comprida do terraço. As cadeiras foram afastadas para dar espaço ao cortejo ruidoso dos comensais. Hosana segue atrás das outras, tão cretina quanto feliz, servindo-se num dos pratos e nos talheres da copa diversa; com direito ao naco de sua escolha e prazer, do peru assado no forno da matriarca.

Faltam dez minutos para meia-noite. O terraço se esvazia. A matriarca, pioneira na rotina dos fins de ano, prefere ficar no terraço em companhia da irmã, sentada na espreguiçadeira de seu uso.

O ajuntamento, na beira-mar, espreme-se à espreita da pirotecnia dos fogos de artifício. Meia-noite. Os estrondos se fazem ouvir. O monte de luzes que cobre a areia e a escassez das ondas da maré baixa, os gritos, os abraços e apertos de mãos, escondem a frigidez de Acaú em noites de rotina. Não há lua. Ninguém sente falta de sua luz. Hosana tem o costume de olhar para a lua quando a luz cobre a calçada vazia de assentos da casa em que mora. Sorri para o lume do astro, certa de que a claridade é cúmplice de sua cretinice. Agora ela conta os pontos luminosos que se espalham a cada eclosão. Pula como as outras, como os adultos. Pode sorrir alto, e sorri tão trêfega que dá conta da juntura perfeita dos dentes, inda que longos, contrastando com a redondez do rosto terroso.

As amigas de Hosana não fazem uso do cumprimento formal, tão necessário quanto postiço, dos adultos com frases feitas. Mas ela quer ser cumprimentada. Ninguém a procura, a não ser as amigas. As amigas encolhem-se nos abraços das mães.

É a primeira vez que Hosana me vê. Ela estende-me a mão com o braço meio encolhido, por certo temendo olhos em nada parecidos com o lume da lua. Seguro sua mão. Com o outro braço, puxo-a para perto de meu tronco, para abraçá-la, inda que com receio de amassar sua compleição fina.

Na volta ao alpendre, há chispas nas conversas. A comida muita traz fastio nos corpos sãos. Também Hosana boceja sem medo seu sono manso. Ela recolhe-se à cama no quarto ao lado da casa. Dorme sozinha. Não tem medo do escuro nem da solidão, porque sabe que sono não desfaz seu sorriso cretino.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor