Ah, esse Getúlio!
Recém conclui a leitura do primeiro dos três tomos da excelente biografia de Getúlio Vargas escrita pelo jornalista cearense Lira Neto (o mesmo dos premiados “O inimigo do rei: Uma biografia de José de Alencar” e “Padre Cícero – Poder, fé e guerra no sertão”). Suas mais de 500 páginas confirmam o que vai escrito na apresentação: “Combinando rigor e talento literário, o texto de Lira Neto conduz o leitor por uma trama que passa com desenvoltura do prosaico ao épico, do doméstico ao histórico.
Publicado 01/06/2013 11:46
Figuras como Luiz Carlos Prestes, Washington Luís e Assis Chateaubriand, além do biografado, são colhidas como no contrapé, nos bastidores de sua atuação pública, sobre o pano de fundo de um país em dramática transformação”.
Essa amplitude de cenários, personagens e circunstâncias históricas, num texto primoroso anos luz distante do apologético e das simplificações do panfletarismo a favor ou contra, é que tornam a biografia escrita por Lira Neto uma leitura a um só tempo consistente e sedutora. Aguardemos os dois outros tomos, ainda não publicados, que abordarão o período posterior à revolução de 30, passando pelo Estado Novo, a deposição pelos militares, em 1945, o exílio em São Borja, o retorno à Presidência, em 1950, e por fim o suicídio, em 24 de agosto de 1954.
O que chama a atenção é o Getúlio que emerge desse primeiro tomo da trilogia, um Getúlio cuja obsessão pelos consensos políticos e a quase repulsa a atos de contestação o conduziram próximo da covardia. Não será exagero afirmar que a revolução de outubro de 1930 foi garantida pela ação corajosa, junto ao líder gaúcho, de Oswaldo Aranha, João Neves da Fontoura e Flores da Cunha, seus três colaboradores mais influentes. Com o processo de gestação revolucionária já em curso, e Getúlio vacilava, inseguro quanto às chances de vitória e temente, até o derradeiro instante, de um confronto direto com o então Presidente Washington Luís.
Há, por outro lado, a interessante revelação de um viés bastante conservador do político gaúcho, que em nada fazia presumir as atitudes que tomaria no poder nacional logo em seguida. Antes da revolução, para citar um exemplo emblemático, mostrava-se contrário ao voto secreto, adotando a máxima positivista, repetida à exaustão por Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, de que devemos viver às claras. Obviamente, esse “viver às claras”, ou seja, votar em aberto, foi um dos garantidores do poder castilhista/borgista no Rio Grande do Sul, entre o final do século 19 e as primeiras décadas do 20.
Logo após sua eleição para a Presidência da Província do Rio Grande do Sul, e em visita a São Paulo, Getúlio foi evasivo quando um repórter de “O Estado de S. Paulo” lhe indagou sobre o voto feminino. O gaúcho apenas sorriu e desconversou. Um sorriso que o repórter interpretou como a pouca esperança de Vargas na interferência da mulher em coisas da política. Mas se Getúlio era evasivo, outros eram assertivos, como o capixaba José de Melo Carvalho Muniz Freira, ex-presidente do Espírito Santo, para quem a aceitação do voto feminino seria algo “imoral e anárquico”, capaz, como registra Lira Neto, de provocar “a dissolução da família brasileira”.
A despeito desse estranhável perfil, de natureza vacilante e conservadora, o fato é que Getúlio Dornelles Vargas, em outubro de 1930, liderou a revolução vitoriosa, movimento que, pelos próximos anos, abriria uma nova fase na vida do país, introduzindo o Brasil no século 20. Entre as diversas e estruturais medidas que tomou, modernizando e democratizando o país que até então vivera sob o tacão da velha república das oligarquias, estava o decreto 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, instituindo o voto feminino no Brasil.