Ainda saudosa da cozinha no sertão, apesar da trabalheira

Estou impregnada de carinho depois que escrevi ''Lembranças de uma cozinha e da primeira galinha cheia'', (a coluna anterior) onde revelei um pouco de minhas vivências de menina sertaneja que bateu asas e voou, ultrapassando as fronteiras do sertão e perc

A primeira, através da leitura. Ler é bater pernas pelo mundo. A segunda, presencialmente. Não o mundão todo. Alguns países da América Latina, da Europa e todos da América do Norte (Canadá, Estados Unidos e México). No continente africano, somente a África do Sul. No continente asiático, apenas a Índia. É muito para quem não nasceu em berço de ouro e não é caixeira-viajante. Eu sei. Mas a medicina legou-me asas.


 


 


Conheci os lugares que mais desejei em sonhos. Sei que não é pouca coisa e que é um privilégio, todavia mantenho uma âncora no sertão natal, que são as doçuras das ternas lembranças.


 


 


Muita gente pediu mais. Do mesmo! Já escrevi muito sobre o tema. Relembro ''Sob o calor de outubro'' (O TEMPO, 12.11.2003), que contém passagens pitorescas que merecem repeteco…


 


 


''Naquela época, as férias escolares iam de dezembro a fevereiro. Aulas só em março. Julho? Sempre foi mês de férias. Nas férias do meio do ano não trabalhava muito em casa, mas nas de dezembro… A ordem de vovó era: na primeira semana, pode dormir à vontade e receber as visitas. Eram muitas. Parecia uma romaria. A casa ficava cheia de gente. Parentes e pessoas amigas visitavam a 'menina do Braulino' (meu avô) que 'estudava fora'. Vovó fazia doces maravilhosos. A cristaleira ficava cheia de compoteiras de doces. De vários tipos. A cada visita, vovó servia doces e refrescos (chamava-se refresco e não suco).


 


 


Um pouco de minhas vivências de menina sertaneja que bateu asas e voou, ultrapassando as fronteiras do sertão e percorreu o mundo


 


Depois da primeira semana de férias começavam as obrigações. Fazer o café da manhã todos dias. Era uma trabalheira. Torrava-se o café para durar uma semana. Na hora de fazer o café, precisava moer. Na hora. Vovó só tomava café moído na hora. Dizia que conhecia se não fosse moído na hora. O que não era verdade. Esperta, eu guardava de vez em quando algum café moído. Era para diminuir o trabalho da manhã seguinte. Ela sequer percebia. Cuscuz de milho e de arroz. Os dois. Precisava deixar o milho e o arroz de molho durante toda a noite e cedo… pilava o arroz e o milho. Vovó dizia que a massa de milho e de arroz não prestavam se 'passadas no moinho'. Só no pilão. Poderosa matriarca. Ah, precisava fazer beiju… Até hoje, quando meus filhos dizem: 'mãe, faz beiju', digo que não sei. Ainda sei, mas me custa fazer. Não faço, embora adore comer.


 


 


Éramos umas seis a oito pessoas em casa. Alimentar tanta gente com tanta diversidade, todos os dias, era uma canseira. É uma região de vale, com muito nevoeiro e faz muito frio pela manhã cedo. Em junho e julho, ao amanhecer, faz frio de doer. Acordava-se com céu escuro. Caso contrário, não daria tempo de, às sete horas, o mais tardar, ter a mesa posta. Paro no café''…


 


 


Já disse que resistia à tirania culinária de vovó depois de descobrir que ela não reconhecia se o café coado era moído na hora… Ela odiava café de garrafa térmica (coisa de mulher preguiçosa) e achava nojento! Portanto, era uma ''fazeção'' de café sem fim. Eu fazia café pela manhã cedo; depois do almoço; na metade da tarde; e depois do jantar. Cansei de colocar café na garrafa e na hora em que ela pedia, eu requentava e enchia o bule! Demais, não? Fiz café para o resto da vida. Até hoje tenho preguiça de fazer café. Sempre peço alguém para fazer…

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor