‘Anna Karenina – A História de Vronsky”
Amargas lembranças
Em nova adaptação do romance de Leon Tolstói, “Anna Karenina”, o diretor russo Karen Shakhnazarov mescla paixão e conflito bélico
Publicado 27/06/2018 09:16
Lembranças amorosas costumam ser amargas, principalmente se tiverem deixado um rastro de tragédia. ´Difícil não ser envolvido pela Anna Karenina de Vivien Leigh (1913/1967), a caminhar pelos trilhos da estação ferroviária de São Petersburgo. Enquanto o trem avança em sua direção, a nuvem de fumaça se espalha, numa dualidade de tensão e fatalidade. Com bem elaborada elipse, o cineasta francês Julien Duvivier (1896/1967), constrói uma atmosfera de elevada dramaticidade na adaptação de 1948. Sem fugir ao eixo central do romance de seu compatriota Leon Tolstói (1828/1910), o russo Karen Shakhnazarov (08/07/1952) prefere mesclar frustrações amorosas e conflito bélico nesta oitava versão para o cinema.
A obra de Tolstói, “Anna Karenina”, publicada em 1877, dá conta das ansiedades e temores da nobreza diante das mudanças na Rússia dos tzares. E abre com a emblemática frase: “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”. Espelha a vivência do conde Vronsky (Max Mativeev), de meia idade, como coronel envolvido nos combates às tropas japonesas na Manchúria, em 1904, antevéspera da derrota para o império do Sol Nascente, em 1905. Ao se encontrar no front com o oficial-médico Serguei Karenin (Kiril Grebenshikov) descobre que não conseguiu escapar ao seu passado.
Não sem descanso, Serguei o faz se dar conta de sua relação com Anna, sua mãe, enquanto os japoneses bombardeavam o hospital de campo em que se encontravam. O que flui a partir daí é o desconforto entre o rancor do jovem e a tentativa do conde controlar o borbotão de fatos a emergir do que reprimira por trinta anos. Desta forma, Shakhnazarov divide sua narrativa em dois temas centrais: I – As atribuladas relações de Vronsky com a nobre Anna Karenina ( Elizabeta Boyarskaya) e seu marido, o alto funcionário Aleksey Karenin (Vitaliy Kishchenko), II – As tentativas de Vronsky para evitar que as tropas japonesas bombardeiem e ocupem a encosta em que montou seu QG e assim evitar a dispersão de suas tropas.
Shakhnazarov expõe o conservadorismo russo
O filme se torna assim uma crônica sobre a nobreza russa do final do século XIX e um épico no campo de batalha no início do século XX. No primeiro tema, Shakhnazarov e seu co-roteirista Yuri Poteenko centram a narrativa no romance de Tolstói. Já no segundo adaptam o conto “Notas de um médico sobre a guerra russo-japonesa”, do russo Vikent Veresaeu. Deste modo, Shakhnazarov expõe o conservadorismo e a hipocrisia a grassar pelos luxuosos salões nos quais a nobreza dançava mazurca e valsa e participava de elegantes competições de hipismo no hipódromo, enquanto trocava suspeitos olhares e bisbilhotava vida dos Karenins.
A Karenina a emergir neste “Anna Karenina – A História de Vronsky” não é chorosa e frágil, como as das outras sete versões do romance de Tostói, inclusive a com Vivien Leigh. Sem baixar a cabeça, ela percorre os luxuosos salões, mesmo vigiada por Karenin, e não cede quando ele tenta forçá-la a romper com Vronsky. É atenta ao que se passa ao seu redor, não quer ser a dama dos salões, dos teatros e das recepções da nobreza. Nem se curva ao ser ameaçada pelo marido de ser proibida de ver o filho Serguei. E, além disso, ser obrigada a se submeter aos dogmas e preceitos da conservadora Igreja Ortodoxa Russa que condenava o divórcio à época.
Ao invés de entrar em pânico, reagiu com equilíbrio, embora temesse ficar distante do garoto. Em resposta à atitude dele, avisou-lhe que receberia Vronsky em seu apartamento. Ele se irritou, esbravejou, mas aceitou o amante em seus aposentos, pois temia escandalizar ainda mais a nobreza de São Petersburgo. E, à exemplo da Norma Helmer, da peça “Casa de Bonecas” do norueguês Henrik Ibsen (1828/1906), escrita em 1878/1879, decide não mais submeter-se às imposições dele para manter as aparências. Passou a agir com total independência sem abandoná-lo.
Karênina mostra sua independência
É na bem construída e montada/editada sequência da corrida de cavalos no hipódromo lotado, diante da nata da nobreza, que Shakhnazarov estrutura cena por cena a mostrar as dualidades, as nuances, as reações e a tendência de Karenina para enfrentar Karenin. Torce afrontosamente para a vitória de Vronsky. A cada curva da pista, o avanço de uma cabeça do cavalo a tensão cresce, já não lhe importa mais o que ele pensa. As cenas se alternam entre ela, ele e Vronsky num crescendo, em cortes rápidos e o que ocorre não a satisfaz, mas o deixa em segundo plano.
O que se vê nesta longa sequência em variadas tomadas de grande plano, closes, planos aproximados, é a força da técnica de “montagem acelerada” e de “contraposição em dois campos de ação”, cujo mestre-teórico foi o russo Serguei Eisenstein (1898/1948). Como nas sequências das escadarias de Odessa em “O Encouraçado Potemkin (1925)” quando as tropas do tzar avançam sobre operários, mulheres e crianças, E também nas aceleradas cenas de “A Greve (1924)”, nas quais a tensão vai se acumulando enquanto os operários se preparam para silenciar as máquinas. O espectador se vê preso à tela, como se hipnotizado e com ela interage.
Não se trata de prender o espectador à tela por prender, o que seria manipular, como se vê em muitos filmes de ação, mas de chamar atenção para a técnica que une reflexão, dialética da montagem e psicologia dos personagens. Há mais do que torcida pela vitória de Vronski nas sequências de ação do hipódromo. Karenina o faz ali mais para mostrar a Karenin que rompeu com ele de vez. E corre para a pista de corrida, quando o momento exige. São, assim, várias tensões e ações e imersões psicológicas, cheias de símbolos e significados que tornam vivos os personagens. Notadamente Karenina, numa afirmação de independência, como mulher, diante das pressões e perseguições e tramoias da nobreza.
Vrosnky enfrenta seus próprios impasses
Por sua vez, Vronsky é flexível, apaixonado, não teme enfrentar Karenin. Sabe dos riscos que corre e no tipo de sociedade que vive. Na sequência em que Karenina vai ao teatro e fica em seu camarote, às vistas da nobreza radical, ele a socorre quando os camarotes pertos do seu começam a ser esvaziados. O ocorre que entre eles, a partir daí, oscila entre viverem juntos ou submeterem-se aos ditames da alta e poderosa classe, cujo poder seria abalado de uma só vez pela primeira Revolução Russa (22/01/1905 a 16/07/1907) e a derrota para o império japonês em 1905. E ambas ainda puderam contemporizar, menos quando veio a segunda Revolução Russa (1917/1991), que baniu a nobreza e o tzarismo.
O modo como Vronsky enfrenta seus próprios dilemas, entre eles o de não ter chegado a tempo para evitar o que ocorreu a Karenina, ainda o atordoa. E o que adveio daí lhe foi explicitado por Serguey de forma a lhe permitir aplacar o ódio que nele persistia. Não só isso, serviu também para ele revelar sua tendência à redenção ao se dispor ao proteger a adolescente chinesa Chungsheng, que significa “Nascida na Primavera”. Mesmo em meio aos disparos e o avanço das tropas japonesas, seus soldados se protegendo, ele não se apressa, talvez por perceber o quanto purgou nas horas em que esteve diante do filho de sua amada, Karenina.
Enfim, um filme cujas imagens encadeiam dois dramas, num só. Shakhnazarov ao atualizar a relação de Vronsky com Karenina, traduz, a um só tempo, a forma derramada como a paixão é bloqueada pelos costumes e as classes dominantes, mesmo se for entre os seus. Tolstói, por ser da nobreza, sabia traduzi-la em enredos com personagens semelhantes aos seres de seu meio. Daí faz sentido dizer que “as famílhas são infelizes cada uma à sua maneira”. Vronsky jamais se recuperou do baque que levou ao chegar quando a fumaça do trem já envolvia Karenina.
Anna Karenina – A História de Vronsky. (Anna Karenina: Istoriya Vronskog o, Rússia). Drama. Rússia.2018. 138 minutos. Trilha sonora/Yuriy Poteenko. Montagem: Frina Kozhemyakina. Fotografia: Aleksandr Kuznetsov. Roteiro: Karen Georgievich Shakhnazarov/Yuriy Poteenko. Direção: Karen Georgievich Shakhnazarov.