Araguaia no limiar da memória afogada

A passagem dos 37 anos do início da Guerrilha do Araguaia foi devidamente registrada pelo presidente nacional do PCdoB, Renato Rabelo, no lastro das exigências apontadas ou incrementadas pelos acontecimentos recentes. É preciso levar sua reflexão e orient

Acerca da barragem Santa Isabel, as preocupações do PCdoB com o desenvolvimento — inclusive hídrico — do País estavam em pauta há mais de sete anos em proposição apresentada na Câmara dos Deputados.


 



Diversas coincidências


 


 


O evento dos 37 anos coincide com o anúncio pelo governo federal do mais significativo aparato de busca, envolvendo diversas das suas instâncias administrativas, destinado a cumprir a meta de localizar os vestígios físicos de dezenas de guerrilheiros executados na região pelos agentes e tropas da ditadura — medida anunciada e defendida pelo ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos.


 



Trata-se também do momento em que:
 (1) A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) resolveu processar o governo brasileiro porque deixou de providenciar a logística e os recursos necessários para uma expedição de buscas no Araguaia; de adotar medidas jurídicas para impedir que a Lei de Anistia (de 1979) servisse de pretexto para não investigar e punir quem torturou e matou nos anos de chumbo e, ainda, quanto à responsabilização penal dos autores dos crimes.


 


 


(2) É anunciada a construção, até 2013, de uma barragem que serviria a Usina Hidrelétrica de Santa Isabel e que inundaria o cenário histórico da conflagração, a exemplo do que ocorreu em Canudos com a construção de outro barramento — o açude Cocorobó. O jornalista Leandro Fortes, da Carta Capital, produz um notável alerta sobre o tema, denunciando a factual ocultação pela represa dos vestígios da guerrilha e dos restos físicos dos guerrilheiros enterrados pelos militares.


 


 


(3) Uma reportagem publicada no Jornal do Brasil, assinada pelo jornalista Vasconcelo Quadros, recorda a permanência de onze esqueletos não identificados num anexo do Ministério da Justiça, dos quais dez foram recolhidos nas expedições de 1991, 1996 e 2001 à região — da qual participamos, em duas ocasiões, juntamente com Vital Nolasco, a então deputada federal Socorro Gomes e Zezinho do Araguaia, sobrevivente da terceira campanha oficial de cerco e aniquilamento.
Acerca da barragem, as preocupações do PCdoB estavam em pauta há mais de sete anos. Em 2002, após o apagão que revelou a total inadimplência dos governos liberais na manutenção e desenvolvimento do engenhoso sistema hidrelétrico brasileiro, as deputadas Socorro Gomes (PCdoB-PA) e Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), e o deputado Inácio Arruda (PCdoB-CE), apresentaram um requerimento para a realização de audiência pública na Câmara sobre a construção da ''escada'' de barragens nos rios Tocantins e Araguaia, inclusive a de Santa Isabel, já licitada.
Militares: entre Curió e a legalidade


 


 


Em toda a expectativa de revelações sobre os protagonistas da guerrilha, caducou, enquanto pretexto para vedar o resgate da memória do histórico acontecimento, o surrado argumento de que haverá incômodo para os militares, visto que a reação aos avanços não é unânime nas forças armadas. Estas devem apresentar o maior interesse em superar uma mácula à instituição e ao seu lugar constitucional, diante das indiscutíveis evidências de que foram afastadas da legalidade naquele período obscuro da História do País e da própria corporação.


 


 


A atualização histórica que viabiliza essa mudança de postura evidencia o papel dos militares na oposição ao governo tirânico de Arthur Bernardes, no marco dos anos 1920, quando se destacou o movimento tenentista, com a Revolta do Forte de Copacabana, a Revolução de 1924 e a Coluna Prestes, entre outros episódios de resistência ao sufocamento das liberdades e que influíram em significativas transformações progressistas, políticas e econômicas, no Brasil.


 


 


Nessa visão panorâmica de seus antecedentes e ancestrais, generais, brigadeiros e almirantes devem apresentar grave desconforto ao ver seu papel diminuído à comparação com a figura emblemática do coronel Sebastião Curió, entre outros elementos que conspurcaram a imagem da corporação militar, rebaixando-a a covarde condição balizada pela tortura, execução, degola, mutilação em geral e sumiço de prisioneiros em seu poder.


 


 


A condenação nada castrense de Curió


 


 


Como agravante dessa postura, Curió, que novamente não cumpriu sua bravata da publicação de um livro sobre a Guerrilha do Araguaia, foi condenado recentemente ao pagamento de R$ 1,1 milhão por corrupção com recursos públicos, principalmente do FUNDEF, entre 2001 e 2004, como prefeito do município de Curionópolis.


 


 


A Justiça Federal em Marabá o enquadrou por enriquecimento ilícito, fraude em licitações e agressão aos princípios de honestidade e legalidade na administração pública, em decisão publicada no dia 25 de março de 2009, com a suspensão dos seus direitos políticos por cinco anos.


 


 


Entre as muitas fraudes, o processo contra Curió percorreu a contratação de empresas fantasmas, uso de notas fiscais falsas, inexistência de processos licitatórios ou processos irregulares. As investigações também averiguaram fraude na criação do conselho do FUNDEF, que não chegaria a funcionar durante o período pesquisado. Fundador e ex-prefeito de Curionópolis, esse mau elemento teve o mandato cassado em 2008 pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), condenado por compra de votos e abuso do poder econômico.


 


 


Nenhum militar honrado, de qualquer patente, gostaria de se nivelar ou coonestaria a postura inescrupulosa desse tenente-coronel da reserva — o maior símbolo entre os responsáveis pela barbárie na Guerrilha do Araguaia, juntamente com o coronel Lício Maciel e outros fascistas que enlamearam todos os códigos de postura castrense.


 


 


Não basta o Memorial


 


 


Se surgem como inócuas as objeções ao desvendamento dos chamados arquivos secretos, são também absurdas as iniciativas que, sem pensar amplamente o desenvolvimento — e a pretexto de incrementar a matriz energética — tratam de inundar com sua indiferença monetária territórios ricos em memória histórica, arqueológica ou tecnológica.


 


 


Além disso, não obstante os problemas em si significativos ocasionados pelos prejuízos irremediáveis do alagamento para a instalação da usina hidrelétrica, com a barragem Santa Isabel, há diversas outras questões relevantes a se considerar. Mesmo procedente, a recomendação oficial (IPHAN) da construção de um memorial às vítimas da Guerrilha do Araguaia, no caso da construção da hidrelétrica, termina surgindo como um anestésico, quase uma catarse, que sequer ampara o ato “cirúrgico” pretendido na consciência histórico-social.


 


 


Embora o Memorial seja importante, a memória da guerrilha extrapola significativamente o confinamento enquanto moeda de troca para um gigantesco estrago. Essa memória compreende as idéias de desenvolvimento contidas no planejamento estratégico dos guerrilheiros e os projetos de emancipação social requeridos por uma população historicamente esquecida antes da guerrilha e, depois, literalmente massacrada pela intervenção militar e por suas “ações cívico-sociais”, conhecidas como operações Aciso — que viriam pateticamente se contrapor aos elevados propósitos do manifesto da União pela Liberdade e Direitos do Povo (ULDP).


 


 


(Uma tentativa que, de algum modo, buscou em parte resgatar tais anseios consistiu numa proposição apresentada e defendida na Câmara pela então deputada Socorro Gomes no limiar do atual século: o projeto de criação da Região Integrada de Desenvolvimento do Araguaia e Tocantins, que teve sua tramitação interrompida numa transição de legislatura — e nenhum parlamentar da região teve interesse em desengavetá-la).


 


 


Preocupações “arqueológicas”?


 


 


Também não basta a necessidade levantada pelo titular do IPHAN, Rogério Dias, de um levantamento sistemático de arqueologia nas áreas de “vestígios materiais”, segundo o jornalista Leandro Fortes “uma maneira cautelosa de se referir às ossadas dos 58 guerrilheiros desaparecidos na região”. Nem a recomendação da mesma procedência de que “também será preciso ouvir as pessoas da comunidade que foram atingidas pela ação do Exército para se garantir o registro histórico da guerrilha e dar legitimidade (grifo nosso) à construção da barragem da Usina de Santa Isabel”.
Embora seja importante que a população local seja “ouvida, em audiências públicas, para se manifestar livremente sobre o projeto”, o representante do IPHAN apenas parece assinalar que há uma senha para que o Ibama encaminhe o “jeitinho brasileiro” para a liberação da “obra certa” no lugar errado.


 


 


É correta a preocupação com “a situação do sítio arqueológico da Ilha dos Martírios, uma área onde estão registradas milhares de gravuras rupestres conhecidas desde o período colonial, no século 18” e com os estudos complementares, “que devem levar em conta a necessidade de se fazer um levantamento etno-histórico da cultura material dos povos indígenas ancestrais da região, além de outro levantamento semelhante, relativo às comunidades existentes nas margens do rio Araguaia”.


 


 


Mas, além desse acervo de questões, que por si determinam a construção dessa barragem em outro lugar pela própria inadequação da área escolhida — requer na verdade a instalação de um parque nacional —, há questões relativas à perpetuação do nosso considerável potencial em recursos hídricos que alcançam a centralidade de um projeto nacional de desenvolvimento ignorado pelos governos neoliberais, mas tratado ainda superficialmente pelo governo que elegemos em árduas jornadas.


 



Projeto nacional e gestão hídrica


 


 


A barragem Santa Isabel, longe de significar solução, é um antigo problema. Uma coluna da nossa autoria — a primeira, no nascimento do vermelho.org — publicada no dia 26/03/2002, já comentava a pretensão do governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, de construir uma ‘escada’ de 13 barragens no Tocantins/ Araguaia, envolvendo um território superior a 12 mil quilômetros quadrados de florestas tropicais, cerrados e mais de 75 mil habitantes. (De lá para cá esse propósito dobrou, passando-se ao projeto de inundar 24 mil quilômetros quadrados no vale do Rio Araguaia, em 2013).


 


 


A represa envolveu uma concessão inicial de 35 anos, renováveis, e pagamentos anuais pelo consórcio no valor de R$ 61 milhões do 7º ao 35º ano da concessão. A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD ou a multinacional Citicorp, dos EUA, que obteria depois um lucro de R$ 5,5 bilhões somente em 2004) ganhou a concessão da Usina em 30/11/2001, em leilão realizado pela Agência Nacional de Energia Elétrico (ANEEL), quando encabeçou o Grupo Empresarial Santa Isabel — formado pela própria CVRD (43,85%), Billiton Metais S.A. (20,60%), Alcoa Alumínio S.A. (20,00%), Votorantim Cimentos Ltda. (10,00%) e Camargo Corrêa S.A. (5,55%).
Na época, a geração de energia elétrica já representava um dos principais negócios da CVRD, segundo suas diretrizes estratégicas divulgadas em outubro de 2001.  Após ganhar a Santa Isabel, passava a participar com 45% de um conjunto de nove usinas hidrelétricas, com capacidade instalada de 3.364 MW e investimento total de US$ 1,7 bilhão.


 


 


Na pauta, o apagão de FHC


 


 


Naqueles dias o País vivenciara uma crise energética que “legou à sociedade brasileira uma lição nova e um amplo leque de questões, visto que o racionamento e os apagões, mais que ameaças, revelaram claramente a inadimplência do projeto neoliberal também quanto à possibilidade de planejar a favor do povo e do País”.
Antes disso, um controvertido debate acerca da integração das águas do rio São Francisco com o Nordeste Setentrional, dividia as opiniões, pois a viabilidade do projeto compreenderia algo além da revitalização do próprio rio, mas uma interligação de bacias que, no contexto brasileiro, implicaria na transposição das águas do Tocantins. Essas questões atualizariam a necessidade de uma gestão eficaz (e de um plano nacional) de recursos hídricos no Brasil, no contexto do projeto nacional de desenvolvimento.


 


 


Há mais de sete anos, portanto, essa preocupação já estava em pauta. Naquele momento, as deputadas Socorro Gomes (PCdoB-PA) e Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), e o deputado Inácio Arruda (PCdoB-CE), apresentaram um requerimento para a realização de audiência pública na Câmara sobre a construção da ''escada'' de barragens nos rios Tocantins e Araguaia — que, “na ausência de investimentos públicos do governo Fernando Henrique, somente prevê investimentos privados”.


 


 


A “volta” no neoliberalismo


 


 


Os três parlamentares queriam saber se a ''escada'' fazia parte de um plano nacional de recursos hídricos, considerando, entre outros aspectos, a interligação de bacias no contexto da gestão desses recursos e o planejamento do aproveitamento hidrelétrico no Brasil.


 


 


Entre outros aspectos, indagava-se qual o planejamento oficial estabelecido após o fim do racionamento e onde se enquadravam as estimativas relacionadas à construção dessa ''escada'', envolvendo um significativo território. Tal impacto deveria ser examinado não apenas quanto às seqüelas nas florestas, ecossistemas de pantanais, sítios arqueológicos e na própria história e vida das populações.


 


 


Indagava-se ainda quanto às finalidades implícitas e explícitas das obras anunciadas e quanto à noção de desenvolvimento sustentável, do mesmo modo que as demandas produtivas requeridas pelas populações envolvidas exigiriam uma avaliação do seu custo-benefício.


 


 


Essa avaliação, voltada para o planejamento estratégico do Brasil, deveria considerar as necessidades e investimentos públicos de longo prazo no contexto de uma perspectiva de desenvolvimento inexistente na gestão neoliberal. A aposta oficial quanto aos investimentos privados no setor implicaria em maiores preocupações quanto à adoção de novas políticas de uso das águas, visto que estarão subordinados precipuamente ao temor imediato de novas crises energéticas e às metas de autonomia das empresas interessadas na ''escada''.


 


 


Singela “Santa Isabel”


 


 


Então, a dimensão das obras poderia ser aferida especialmente pelo exemplo atualizado da barragem Santa Isabel:  “Esse interesse em investir, contudo, somente deve ser admitido sob um plano de exploração dos recursos hídricos e acompanhado de estudos dos impactos cumulativos da série de barragens, de modo a atender às demandas da região, da sociedade brasileira e do País, evitando-se os riscos de frustração do projeto de interligação de bacias, a partir do assoreamento dos rios e subseqüente destruição do formidável sistema hídrico brasileiro”.


 


 


A audiência envolveria as comissões de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias (CDCMAM); Desenvolvimento Urbano e Interior (CDUI); e Amazônia e Desenvolvimento Regional (AMDR). Foram convidados titulares de organismos públicos e entidades da sociedade civil: ministérios do Meio Ambiente, da Integração Regional e das Minas e Energia; a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL); o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); a Comissão Mundial de Barragens (CMB); o Fórum Carajás Brasil e o Instituto de Engenharia Elétrica e Eletricidade da Universidade de São Paulo (IEE/USP).


 


 


A derrota neoliberal no mesmo ano de 2002 contribuiu para adiar o debate, que também não prosperou com a ministra Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente. Marina considerou simplesmente inadequada a execução da obra sem que um estudo da Agência Nacional de Águas (ANA) produzisse uma avaliação global da situação da bacia hidrográfica dos rios Araguaia e Tocantins — onde já vingavam 15 hidrelétricas.


 


 


Como ressaltou Leandro Fortes na Carta Capital, com o novo ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, o Ibama iniciou uma política de revisão dos pedidos de licenciamento ambientais e a barragem de Santa Isabel, entre outras, passou a compor a “coluna vertebral do Programa de Aceleração do Crescimento (o PAC)”. Mas, para isso, foi atropelado um parecer de inviabilidade ambiental emitido em 2002.


 


Parque Nacional do Araguaia


 


Não existe em si nenhuma oposição a construção de barragens, mas certamente a definição do lugar em que se planejou a construção da usina hidrelétrica de Santa Isabel não apresenta razões científicas além da brutal devastação a que foi submetida aquela região do rio Araguaia desde o final da guerrilha, quando o território foi indexado no mapa pelos governos militares — que estimularam a devastação da mata para a exploração madeireira e expansão da pecuária extensiva.


 


E a questão não é do PCdoB, mas da sociedade brasileira. Contra essa escolha se insurgem diversas organizações da sociedade civil, a exemplo do MAB. A edificação de uma represa não se dá mais sem um rigoroso estudo de impacto ambiental-relatório de impacto ambiental (EIA-RIMA) e sem a realização de audiências públicas que envolvam toda a população afetada pelo empreendimento — que deve ser informada e pode se posicionar diante das suas vantagens e prejuízos.


 


No Brasil já foram construídas 2 mil represas, entre hidrelétricas, grandes lagos para abastecimento dos projetos de irrigação ou dos projetos do agronegócio, envolvendo diversos interesses, entre os quais estão os das multinacionais — e as extraordinárias expectativas diante dos recursos de um País que detém a maior capacidade hídrica do planeta, é campeão mundial em biomassa e dispõe de um território com imensas possibilidades de escolha. Muitas outras, nessas condições, podem surgir.


 


A área escolhida pode, portanto, ser convertida num Parque Nacional, de vocação não apenas turística — pela sua significativa riqueza histórica, arqueológica e etnológica, suas 31 cachoeiras, 47 cavernas, a Serra das Andorinhas e inúmeros outros atrativos—, mas também porque o governo Lula não deverá cometer o bárbaro desatino do regime militar, que inundou Canudos e realizou obras invasivas e de contundente interferência sem consulta e sem o menor respeito pelo País e pelo seu povo.

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