As circunstâncias

Tendo os não-nascidos como estandarte, foi instaurado nas eleições de 2006 algo contra o feminismo e os que defendem a laicidade do Estado

O filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883- 1955), para quem “filosofar é uma aventura prazerosa: a sensação de estar prestes a chegar a um lugar onde ainda ninguém aportou”, disse que, “em primeiro lugar, a vida é liberdade, ou melhor: condenação à liberdade.


 



O ser humano é forçado a ser livre, a escolher a cada instante o que vai ser, de onde se segue uma concepção de um ser humano que não é, mas ‘vai sendo’”.


 



Isto é, a humanidade está condenada à liberdade e, em menor ou maior grau, todas as pessoas levam vidas duplas, conferindo assim maior densidade filosófica ao eu-circunstância: “Nós somos nós e as nossas circunstâncias”. São pensamentos insólitos?


 



Talvez. Mas revisitar Ortega y Gasset pode ter alguma serventia para a reflexão sobre as circunstâncias das tentativas de silenciar as idéias libertárias feministas nas eleições de 2006, considerando-se que nelas foi pautado um novo ator político: os não-nascidos, pois, “segundo a opinião majoritária dos participantes da última pesquisa de periodismocatolico.com, os novos pobres em tempos de globalização, por quem a Igreja tem de viver sua opção preferencial, são os não-nascidos”.


 



A pesquisa sobre “As Pobrezas da Modernidade” (imigrantes, alcoólatras, dependentes químicos, portadores de HIV/Aids e “as mulheres em sua condição de segregadas do desenvolvimento e das oportunidades equitativas de trabalho”), de acordo com a matéria “Para católicos, novos pobres são os não-nascidos”, foi respondida por “387 votantes, que em 45,5% estiveram de acordo em que os novos pobres são os nãonascidos; 28,2% consideraram que são os inimigos; 11,9%, os alcoólatras e dependentes químicos; 6,5%, portadores de HIV/Aids; e 5,9%, as mulheres” (Zenit, 27/9/2006).


 


A pesquisa está sendo usada pelo Vaticano, um Estado teocrático, patriarcal e misógino, como uma versão contemporânea do “Malleus Maleficarum”, de autoria dos inquisidores dominicanos Kramer e Sprenger (1486), que afirmava que “toda a bruxaria advém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável”.


 



A sexualidade era o maléfico, estabelecendo a misoginia como elemento constitutivo do cristianismo medieval, que estabeleceu uma tradição de interdição do corpo da mulher e sedimentou uma cultura de que ele era imoral e fonte de pecado, tendo como principal decorrência o controle social do processo de procriação e, por extensão, o controle da sexualidade – que, embora não sendo a única causa, está também na base original da dominação de gênero.


 



Tendo os não-nascidos como estandarte único, foi instaurado nas eleições de 2006, contra o feminismo e os setores que defendem a laicidade do Estado e o direito de as mulheres decidirem sobre seus corpos, algo similar à Bula Papal de Inocêncio VIII (Summis Desiderantis Affectibus, 1484), que liberou as garras da Inquisição (1450-1750) para a caça às bruxas, pois, de cerca de 9 milhões de bruxos que foram queimados vivos, entre os séculos XV e XVIII, 80% eram mulheres e até crianças e adolescentes supostamente herdaram o dom de fazer o “mal” de suas mães.


 



E quem eram essas mulheres? Eram parteiras, cuidadoras de enfermos, curandeiras e raizeiras reconhecidas pelo povo como “mulheres sábias”, mas que o Estado, as autoridades em geral, sobretudo os religiosos católicos, diziam que eram “bruxas e charlatãs” e a Inquisição as considerava hereges e feiticeiras possuídas pelo demônio.


 



Para Rose Marie Muraro, “é com a caça às bruxas que se normatiza o comportamento de homens e mulheres europeus, tanto na área pública como no domínio do privado”.


 



A religião católica não omite que deseja continuar dominando os corpos femininos. Num Estado democrático e laico como o Brasil, não podemos permitir isso. Eis o cerne do que está em jogo nas eleições de 29 de outubro.

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