Bergson: herói do PCdoB e do povo brasileiro
A família de Bergson Gurjão Farias, guerrilheiro do PCdoB executado pelos militares nas selvas do Araguaia no dia 8 de maio de 1972 — às vésperas de completar 25 anos —, decidiu cair em campo para acelerar sua identificação. Em plena discussão acerca dos
Publicado 25/04/2009 19:47
É o início de uma sequência de medidas que pretende assegurar à sua mãe, Dona Luiza Gurjão Farias, o direito de sepultar dignamente o filho desaparecido.
A decisão de Ielnia rompeu um silêncio de quase quatro décadas de sua família, submetida a um choque brutal desde a notícia da sua execução. Ao longo do tempo, as informações foram chegando aos poucos, pois Bergson dissera para seus familiares que iria para a Tchecoslováquia. Depois o descobriram em São Paulo, mas seu deslocamento para o Araguaia, de acordo com o procedimento de segurança adotado na época para todos os quadros que se mantinham na luta, não seria divulgado.
Imponente dona Luiza
No dia 9 de abril passado, numa iniciativa da ex-guerrilheira baiana Luzia Reis, vivemos um emocionante encontro com a mãe de Bergson, dona Luiza Gurjão Farias — aos 94 anos, uma bela senhora que surpreende pela imponência e lucidez. Sua desenvoltura faz da bengala que carrega algo semelhante a um acessório de decoração. Acompanha com interesse a conversa sustentada com Ielnia e Tânia, a filha que mora com ela, e, a intervalos, emite suas opiniões, cintilando o interlocutor com seus olhos claros e ternos.
Serena, dona Luiza chega a sonhar, como confessou certa vez a Ielnia, que gostaria de festejar uma hora dessas a chegada em sua vida de algum rebento do filho guerrilheiro, fruto de alguma relação de amor em sua breve e intensa trajetória. Esperançosa, pergunta como será o enterro de Bergson, se haverá uma lista de convidados e onde será. Lamenta que seu marido, pai do guerrilheiro, não possa presenciar o acontecimento, pois faleceu há algum tempo.
Bergson teve a quem puxar, como se diz no meio do povo. O pai, Gessiner Farias, foi um homem decidido: no mesmo dia em que Bergson foi baleado pela repressão, em 1968, doou sangue para salvar um militante que fora atingido por um projétil que se alojou em seu fígado. O terceiro filho, que herdou seu nome, mora em Brasília, é engenheiro químico e químico industrial aposentado, e hoje leciona lá e em Goiânia. Gessiner Júnior também compartilha da ansiedade de ver o irmão, que completaria 62 anos em 17 de maio próximo, enterrado dignamente.
Nos Estados Unidos, onde mora, Ielnia participou de uma experiência marcante: seu filho, que pertence a Anistia Internacional, a convidou para fazer uma palestra na universidade que frequenta como aluno. Ielnia pensou que falaria para um grupo seleto, mas o tema (a ação da ditadura de 1964 no Brasil) despertou um interesse tal que ela se viu diante de uma numerosa platéia e muitos questionamentos acerca da brutal experiência que se abateu sobre o povo brasileiro no período da intervenção militar.
Primeiro balaço
A história de Bergson, a exemplo de cada um dos guerrilheiros que tombaram durante a Guerrilha do Araguaia, merece destacado registro histórico. Nascido em 17 de maio de 1947, em Fortaleza, filho de Gessiner Farias e Luiza Gurjão Farias, hoje com 94 anos, tem sua existência lembrada em muitas homenagens, entre as quais está um logradouro de São Paulo que registra poucas informações sobre sua vida breve e rica.
De elevada estatura física, moral e ideológica, entrou na lista negra da repressão do regime militar quando, numa passeata do movimento estudantil cearense, em 1968, resolveu salvar um veículo atingido por um coquetel Molotov na Praça José de Alencar, no centro histórico de Fortaleza. Entendeu que o artefato não deveria causar aquele estrago no automóvel de um cidadão que deveria também se perfilar na luta contra a ditadura. Levou um balaço na cabeça. Entretanto, mesmo gravemente ferido, sobreviveu.
Exemplo para a juventude
Bergson, uma jovem liderança do curso de Química da UFC (Universidade Federal do Ceará), fora vice-presidente do Diretório Central dos Estudantes em 1967. Detido em 1968 no Congresso 30º da UNE, em lbiúna, foi expulso da UFC com base no Decreto-lei 477. Indiciado no inquérito promovido pelos militares — que o trucidariam três anos depois —, foi condenado em 1° de julho de 1969 pelo Exército a dois anos de reclusão.
Algum tempo depois rumou para o Araguaia, do mesmo modo que outros jovens e antigos militantes “queimados” na luta política pela restauração das liberdades democráticas no País. Refeito dos ferimentos e sob feroz perseguição, foi residir na região de Caianos, onde prosseguiu suas atividades políticas.
Em sua família, no convívio com seus camaradas e com os moradores da região, sua presença foi marcante pela simplicidade, espírito solidário e dedicado, e, como diz sua outra irmã, Tânia, afetuoso mas firme e flexível nas atitudes. Um perfil riquíssimo de comunista para a juventude que se capacita na luta pelas transformações requeridas pelo Brasil.
Tombou atirando
Bergson tombou nos primeiros tempos do confronto com as tropas oficiais. No dia 8 de maio de 1972, numa emboscada dos militares, protegeu a fuga dos seus camaradas.
No jornal do Brasil de 04/04/2009, o jornalista Vasconcelo Quadros descreve sua morte:
“A história de Bérgson Gurjão Farias é uma das mais dramáticas da guerrilha. Ele e outros quatro ativistas do PCdoB caíram numa emboscada preparada pelos paraquedistas logo no início do conflito. Segundo o Relatório Arroyo (…) Bérgson enfrentou sozinho a tropa para garantir que seus companheiros escapassem ao cerco. Na troca de tiros ele feriu gravemente o então capitão Álvaro de Souza Pinheiro — atualmente general e um dos ideólogos das Forças Armadas –, mas acabou encurralado pela tropa. Ferido, foi executado a golpes de baioneta, num dos episódios mais grotescos protagonizado pelos militares: varado de tiros e barbaramente massacrado, seu corpo foi levado para Xambioá e pendurado numa árvore próxima à delegacia para que a população e outros militantes presos (…). Nessa época, apesar de brutalidades pontuais, os militares tinham ordens expressas do Comando Militar do Planalto de identificar os guerrilheiros mortos e enterrá-los em locais conhecidos. Assim, em 1972, os corpos deveriam ser levados para Xambioá e enterrados no único cemitério da cidade”.
Identificação do guerrilheiro
Outros relatos, entre os quais o do grupo Tortura Nunca Mais, também informam que “seu corpo foi levado para Xambioá, todo deformado, e pendurado em uma árvore, com a cabeça para baixo, a qual era chutada constantemente pelos Paraquedistas mobilizados na caça aos guerrilheiros”. Segundo depoimento de Dower Cavalcanti, ex-guerrilheiro também cearense e já falecido, o General Bandeira de Melo lhe disse que Bergson estaria enterrado no Cemitério de Xambioá.
Agora, como parte das ações que visam a identificação dos restos físicos de Bergson, o deputado estadual Lula Morais, do PCdoB, deverá encaminhar, pela Assembléia Legislativa do Estado do Ceará, um requerimento destinado ao Ministério da Justiça e a sua Secretaria Especial de Direitos Humanos, no qual é solicitado o empenho oficial na definitiva solução dessa pendência com História, com a nação e com a família do guerrilheiro barbaramente executado em maio de 1972.
O artigo de Ielnia
A íntegra do artigo de Ielnia Farias Johnson, irmã de Bergson, publicado no jornal O Povo :
Tragédias brasileiras
* Por Ielnia Farias Johnson
18 de abril de 2009.
Meu passado de militância política se distancia. Porém, hoje residindo nos Estados Unidos, tenho momentos de periódico reencontro com o Ceará, e, integrada numa geração participativa, me toca a realidade atual do País. Nessa condição, observo que duas graves tragédias ainda nos rondam, além das muitas outras, geradas pelas desigualdades sociais – contra as quais lutamos intensamente ao longo ditadura que maltratou a sociedade brasileira por 21 anos.
Refiro-me, primeiro, à tragédia das prisões, torturas, caçadas e assassinatos que se deram em nome da raivosa doutrina de segurança nacional. Eu mesma, ainda muito jovem, fui sequestrada por dois homens em Parnaíba (PI), conduzida para Recife (PE) e submetida a bárbaras torturas, sem noção do que poderia acontecer comigo.
A segunda tragédia consiste na desumanização dessa memória, na indiferença ou descaso quanto ao destino das vítimas do regime. Inúmeras famílias abaladas pela barbárie têm sido “reparadas” com indenizações, como se a moeda remisse a luta, o luto e a dor da perda de entes queridos, inúmeros deles “desaparecidos”.
Na atual temporada, fui surpreendida pela noticia (JB, 4/4/2009) de que presumidos restos físicos do meu irmão, Bergson Gurjão Farias, executado pelos militares na Guerrilha do Araguaia (abril-1972 a janeiro-1975), estão largados no armário de um anexo do Ministério da Justiça, entre dez esqueletos recolhidos na região em 1991, 1996 e 2001. Hoje, 37 anos após o início do confronto, isso me parece, além de trágico, revoltante.
O governo ainda não agiu para tratar as feridas das famílias enlutadas, mas sabe que há muito está em pauta o clamor pelo enterro digno de seus mortos – um rito da Grécia antiga, onde a um soldado que tombou em combate se rendia sentida homenagem nos solenes funerais.
Bergson foi um bom e bravo filho do povo brasileiro – determinado a doar sua vida pela conquista da liberdade. Numa emboscada, protegeu seus camaradas. Enfrentou a fúria dos que covardemente o “trucidaram a golpes de baioneta, num dos episódios mais grotescos protagonizado pelos militares: varado de tiros e barbaramente massacrado, seu corpo foi levado para Xambioá e pendurado numa árvore” (JB).
Minha mãe, aos 94 anos, me pergunta (e a Tânia e Gessiner, meus irmãos) quando e como faremos o enterro do nosso terno e inesquecível guerreiro. E isso me instiga a realizar todas as ações necessárias para a viragem desta página infeliz da nossa História, mesmo vivendo num país onde a reação comum é a do espanto quanto aos feitos da ditadura militar brasileira.
Ao governo brasileiro, cabe oferecer firme resposta ao nosso anseio, em harmonia com a ansiedade do nosso povo. E, desse modo, restabelecer os laços e sentimentos de confiança e cooperação, nesta questão crucial, na relação com quem o elegeu.
* Farmacêutica radicada nos EUA, irmã de Bergson Gurjão.