“Bolt – Supercão”: Realidade da bolha de vidro

Filme da Pixar, subsidiária da Walt Disney, conta a história de cão que estrela série de TV e pensa ter os superpoderes do herói, e procura mostrar à garotada que não se deve confundir ficção com realidade

Gênero de filme que, por ser destinado ao público infantil, escapa a análises mais acuradas, o desenho animado nunca foi isento de mensagens – das mais complexas às mais simples. Desde o velho Mickey Mouse, ainda nos anos 20, até “Bolt”, da dupla Byron Howard/Chris Williams, supervisionados pelo chefão da Pixar, John Lasseter, ele sempre caminhou lado a lado com o momento histórico. Forma de inserir a garotada no que é real na vida da fantasia. Basta ver o Pato Donald combatendo nazistas na década de 40, passando pelo cachorrinho que queria ser um “cão de rua”, em “A Dama e o Vagabundo II”, nos anos 50, até “Os Incríveis”, “Sherek”, “Madagascar” e “O Bicho Vai Pegar”, “Procurando Nemo”, que tratam dos desencontros da modernidade, para se ter uma idéia da multiplicidade de temas e mensagens que, fugindo dos desenhos vistos na televisão, a faz olhar em volta e ter uma idéia de como o mundo se comporta (para o bem ou para o mal). Tudo sem perder, em momento algum, a fantasia (ou pelo menos tentar).



E é justamente do conflito entre realidade e ficção que o filme de Lasseter trata. Bolt é o cão, estrela de um seriado de TV, que faz dupla com a garota Penny. E na vida real, ele é seu bichinho de estimação, amigo de todas as horas. Enquanto ela sabe exatamente seu papel na ficção e na realidade, ele confunde ambos os níveis de vivência. Não tão diferente de astros que representam o tempo inteiro, querendo se passar pelo que não são. Até que um dia, a dupla se distancia. Ela termina voltando a Los Angeles, sequestrada, enquanto ele fica perdido em Nova York. E Bolt fará tudo para retornar aos estúdios, distantes mais de dois mil quilômetros. Esta odisséia é que fará a diferença. “Bolt”, o filme, joga com a dualidade realidade/ficção para tentar mostrar à garotada que uma coisa é a realidade e outra a ficção. E o fará através de Bolt, de uma maneira tal, que quase alcança seus objetivos.



Bolt acredita ser um superherói



No início da jornada, espécie de road-movie animado,  Bolt tenta ser o herói, cheio de poderes, capaz de usá-los contra os bandidos, afastando o mal. Não percebe os níveis de ficção e de realidade. Narcisista, solitário, autoconfiante, ele dispensa a ajuda dos desgarrados que surgem ao longo do caminho. Mesmo para o pequeno espectador é estranho vê-lo comportar-se desta forma, pois ele é sempre atencioso e carinhoso com Penny. Com os outros animais, não. Desdenha a contribuição deles e acredita ser dotado de poderes tais que chegará a Los Angeles usando seus superpoderes. Bem, até surgir o melhor personagem do filme, Mittens, a Gata Negra, de Olhos Verdes. Malandra, acostumada a se virar, cheia de manha, ela é o contraponto para a arrogância do perdido Bolt. O diálogo entre ambos, sempre ríspido, dará o tom da viagem, até ser incorporado outro elemento crucial da trama: o hamster Rhino, que se desloca numa bolha de vidro.



Então, a gata Mittens irá oscilar entre a ficção e a realidade para não deixar Bolt pender ora para seu lado ora para o lado de Rhino. Isto porque, enquanto ela, acostumada à vida dos becos e dos terrenos baldios, tenta mantê-lo próximo à realidade; Rhino, apaixonado pelo Bolt da TV, o incentiva a acreditar em seus superpoderes. Mittens incorpora ainda, a um só tempo, a figura da mulher marginalizada à do negro, cuja voz nunca é ouvida. Bolt não lhe dá atenção, trata-a com desdém, até que ela se impõe. Suas escaramuças vão além das brigas entre gato e cachorro, lembram muito mais as antigas comédias, em que a “parte mais fraca”, a mulher, vai, aos poucos, se impondo à suposta “parte mais forte”. E sua fragilidade é só aparente. Mittens está sempre medindo a distância, analisando as circunstâncias e jogando duro para que as coisas não saiam de seu controle.



Filme volta ao tema do controle do mundo


                     
Como se trata de um road-movie que se encadeia de acordo com as dificuldades da viagem, ela é levada a deixá-lo fazer algumas besteiras para que sigam em frente. Num desses momentos, eles estão no trem que os levará adiante e Bolt a faz descer em alta velocidade. Os pequenos, diante da ação, podem não remeter a sequencia a inúmeros filmes que tratam de fugas de duplas viajando de trem, tampouco às disputas que empreendem ao longo da jornada. Nem recriminar a dupla Howard/Williams por aproximar “Bolt”, o filme, do clichê: fuga do vilão que faz tudo para dominar o mundo. Não se afastando demais da realidade, daquilo que a garotada acostumou-se a ver na TV, parâmetro hoje em qualquer produção que a quer como espectadora. Pois, enquanto Bolt tenta voltar aos estúdios, a série continua, e o Homem dos Olhos Verdes, continua a perseguir Penny. E ele não está lá para socorrê-la. Serve, quando muito, para ligar as pontas da ação, sem que o meio, o road-movie, perca o sentido.



Esta ligação é feita, ao longo da viagem pelos EUA, pelo hamster Rhino. Engenhoso, ousado, ele tem sempre um jeito de solucionar o impasse, sem chocar-se com Mittens, nem deixar Bolt desanimar. Está, como muitos espectadores da ficção adulta, vivendo numa bolsa de vidro, que o tira do contato com qualquer realidade. Sua razão de ser é estar ao lado de seu herói, Bolt, e fazê-lo acreditar que pode se superar. Vive em constante estado de “ficcionite”, falta-lhe só a camiseta, o boné, a coleira, enfim o gadgets que enfeitam a garotada, amante dos personagens de ficção. Como não os tem, ele alimenta sua ficcionite, impulsionando seu ídolo para o encontro com sua amada Penny. Ele é, assim, o outro vértice da história, o que tira a condição de herói, de Bolt, e o faz um cão normal, que precisa de outros animais para alcançar seus objetivos. O herói individual é deixando de lado, pelo menos durante a viagem, espécie de “politicamente correto”, para a criançada.



Lições dos velhos desenhos retornam em “Bolt”



Ninguém consegue nada sozinho, parece ser a mensagem de Lasseter e seus supervisionados. Lembra, em muito, a mensagem de “A Dama e o Vagabundo II”, em que o cachorrinho quer ser, de qualquer modo, um cão de rua. Para isto, foge de casa, entra para a gang dos cães de rua, para frustração de seu pai, o Vagabundo, ex-cão de rua, agora vivendo como cachorro de estimação de uma família burguesa. Nada, no entanto, dá certo, e ele volta ao lar. Mensagem: não tente ser um marginal, ele sempre acaba na pior. E em “Bolt”: sozinho, você não chega a lugar nenhum. Em princípio, nada mal para um filme que começa em alta velocidade, como se ali estivesse, ao invés de Bolt, Arnold Schwarzenegger, combatendo ferozes bandidos. Ocorre que Lasseter joga com o parâmetro da relação garota/cão de estimação, amizade em conflito (relação Mettens/Bolt), crença na capacidade de a ficção ser mais incentivadora que a realidade (comportamento de Rhino) e, sobretudo, na manutenção do “efeito explosão”.



Este efeito a qual se acostumou a garotada, devido ao bombardeio a que são submetidos por belicosos desenhos diariamente, é introduzido para gerar impacto. E o efeito apocalipse faz com que o mundo esteja prestes a se acabar e precise de uma explosão para romper com todos os males. E termina por preparar o pequeno espectador para o combate final. Uma forma de pregação belicista/religiosa, cartilha em que rezam todos os que produzem esse tipo de desenho animado. Se a intenção era mesmo jogar com a dualidade ficção/realidade, para que a criançada não confunda o real com o imaginário, não há porque introduzir a apocalíptica cena em que a ficcionice de Rhino triunfa sobre o realismo de Mittens. Está-se, de novo, diante da criação hollywoodiana do herói que triunfa sobre o mal. Bolt rompe a bolha da fantasia, impulsionado pela Gata Mittens, porém, cai nos ensinamentos do ficcioso Rhino, ao atirar-se na realidade para, enfim, viver seu instante de Supercão.



No final, filme volta ao herói individualista



Se a criança se empolga, no final, a ficção hollywoodiana volta a contar sempre a história do herói, da vitória do individual sobre o coletivo. A Gata Negra, Mittens, fica para trás. A família disfuncional: mãe/filha/cão voltam a viver junta. Claro que não apenas graças ao hamster Rhino, só que Mittens fica de fora. “Bolt” assenta-se assim na ideologia e, por que não, na apologia do individualismo, no arranhado american-way-of-life, na regra-família da Disney, ainda que disfuncional. Resta, deste modo, algo capenga, incompleto, retrato destes tempos que em que os papéis estão sempre se invertendo, ainda distante do rumo que deveria tomar. Afinal, tempos de transição são assim mesmo. “Bolt” é tão só mais um cão, sem poder algum, vivendo num mundo onde não só as crianças vivem seus momentos de Rhino, presas em suas bolhas de vidro.



“Bolt – O Supercão”. (“Bolt”). EUA. 2008. 96 minutos. Roteiro: Dan Fogelman e Chris Willims. Direção: Byron Howard e Chris Williams. Supervisão: John Lasseter.

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