Caio Prado Junior: Uma idéia de revolução brasileira

Em 11 de fevereiro de 1907 nasceu Caio Prado Jr. Cem anos depois a sua obra continua instigante e merecedora de novas análises, pois temos nele um dos maiores historiadores brasileiros do século 20.


Em 1966, com A revolução brasileira, Caio Prado Júnior coroou sua tese iniciada em 1933, em Evolução política do Brasil: o Brasil foi capitalista desde o princípio da conquista portuguesa do território.



Consolidou ao mesmo tempo sua posição diante das teses do PCB sobre os países identificados como semicoloniais ou semifeudais: para ele, a formação social brasileira nunca comportou o feudalismo como modo de produção.



Na primeira edição de Evolução política do Brasil, Caio Prado Júnior afirmou que sua intenção não era realizar apenas um ensaio que fosse uma síntese da evolução política do país, resgatando uma história avessa aos heróis e aos grandes fatos das classes dirigentes, mas sem abandonar essas mesmas classes. O autor foi um dos autores originais, no panorama da historiografia brasileira, através da preocupação permanente com a recuperação da memória histórica das camadas populares.



Porém, afirmava ali que sua intenção, a partir de um método relativamente novo, o materialismo, era ir além da superfície dos acontecimentos, como faziam os historiadores de até então. Para Caio Prado, estes, até então, não viam que acontecimentos tais como as expedições sertanistas, as entradas e bandeiras, as substituições de governos e governantes e as invasões ou guerras eram apenas reflexos exteriores de algo mais profundo, expressão glorificada das classes dirigentes e da história oficial.



O autor, um dos primeiros a buscar interpretar a formação social brasileira a partir de pressupostos teóricos do materialismo histórico, incorporou, procurando negar e superar muitos dos historiadores tradicionais. Assim, a dificuldade sobre um material que ainda estava por constituir-se, expressava a necessidade do acesso a muitas fontes ainda inéditas, mas imprescindíveis para uma história mais ampla e crítica sobre o Brasil. O autor foi buscar na literatura histórica parte de suas respostas.



Aqui estava boa parte da razão da utilização de categorias teóricas tradicionais, como descoberta e colonização, sem o necessário e apurado rigor crítico sobre elas, incorporadas de autores precedentes, mas que marcaram boa parte da sua obra.



Em Evolução política do Brasil, Caio Prado Júnior parece mais “aplicar” o pensamento marxista a partir das obras existentes sobre o processo histórico-político brasileiro do que estudá-lo concretamente. Porém, esse limite deve ser visto em sua época, haja vista a relativa recepção tardia que o materialismo histórico, em particular, e o marxismo, em geral, tiveram no Brasil. Mesmo assim, essa obra marcaria em originalidade.



Por outro lado, categorias fundamentais para o referencial do materialismo histórico para o estudo de uma formação social específica como relações de produção ou modo de produção não eram ali manejadas pelo autor.
Coerente com sua formulação inicial, Caio Prado Júnior escreveria nove anos depois, em 1942, que o Brasil colonial e o início do século XIX eram a “chave preciosa e insubstituível para se acompanhar e interpretar o processo histórico posterior”. Era a chave para se entender a Formação do Brasil Contemporâneo, erigida sobre a base e o passado colonial, como já havia anunciado na obra anterior.



Restava responder uma segunda questão: se a economia colonial era integrada à da metrópole, qual seria o caráter econômico dessa última para compreender também a primeira. Isto é, era necessário entender por onde se davam os mecanismos de ligação que marcavam as estruturas econômicas de ambas, colônia e a metrópole, possibilitando assim a compreensão da sua “evolução” futura. Ora, se a metrópole, ao proceder a “colonização” do Brasil estava ligada a um processo de transição do feudalismo para o capitalismo, então a colônia integrada àquela apresentava identidade semelhante, sendo essa relação essencialmente estabelecida pelo comércio. Numa fase de predomínio do “capitalismo mercantil”, a colônia é vista como uma extensão metropolitana, pois o centro da sua análise será feito a partir do processo de circulação de mercadorias.
Como resultado prático, a partir da visão do autor, serão produzidas estratégias diferenciadas sobre o caráter da revolução brasileira, algumas delas influenciando os movimentos anti-ditadura no pós-1964.



Em 1966, vinte e quatro anos depois de Formação e depois de dois anos do Golpe Civil-Militar, que havia derrotado a estratégia de revolução em etapas defendida pelo PCB, Caio Prado Júnior escreveu A revolução brasileira. Entendendo revolução como a transformação estrutural do regime político e econômico-social e não apenas como a derrubada de um governo e a tomada do poder, o historiador reafirmava a antiga crítica frente às concepções duais de revolução brasileira.



Como em Formação do Brasil Contemporâneo, Prado Júnior mais uma vez negava, peremptoriamente, a existência de um sistema feudal, semifeudal ou aparentado ao feudalismo na história brasileira. Para ele, a grande propriedade rural se formou na base da exploração comercial em larga escala e realizada com o braço escravo introduzido juntamente com essa exploração, e por ela e para ela. Em decorrência, esse sentido inicial da colonização fazia com que na década de 1960, quando era escrito o livro, a luta dos trabalhadores do campo não devesse ser pela conquista da terra, mas sim pela “obtenção de melhores condições de trabalho e emprego”.



Portanto, o problema central da questão agrária no Brasil não era essencialmente a questão da terra. O que avultava naquele processo e constituía seu motor e dinamismo básico eram as contradições nele presentes ligadas a relações e situações de emprego.



Isso porque, segundo Caio Prado Júnior, “a economia agrária brasileira não se constituiu a base da produção individual ou familiar, e da ocupação parcelária da terra, como na Europa, e sim se estruturou na grande exploração agrária voltada para o mercado, sobretudo o mercado externo”. Esse processo acentuou ainda mais a natureza essencialmente mercantil da economia agrária brasileira, em contraste com a dos países europeus.



Assim, na análise pradiana o Brasil transitou de uma colônia com as características apontadas acima, para buscar uma “coletividade nacionalmente integrada, isto é, voltada para si mesma e estruturada social e economicamente em função de sua individualidade coletiva e para atender as aspirações e necessidades próprias”,


voltadas para o mercado interno, mas sem formar uma burguesia nacional que fizesse frente ao imperialismo. Concluir esse processo quebrando a herança colonial e os seus efeitos principais ainda presentes, rumo a uma economia nacional: eis o centro nevrálgico da “revolução brasileira” para Prado Júnior.



O método de análise centrada na circulação de mercadorias contribuiu para uma vertente teórica, com grande respaldo acadêmico no Brasil, que também teve conseqüências práticas e políticas de outra orientação, construindo uma estratégia de revolução que colocava como tarefa histórica mais urgente: a modernização do capitalismo brasileiro e não a luta contra o latifúndio. Uma interpretação que ainda hoje traz reflexos na ação dos movimentos sociais do campo, em especial dos sem-terra, entre estratégias de reforma e revolução.



A interpretação historiográfica, teórica e política de Caio Prado Júnior revolucionou a produção teórica sobre o Brasil, mas contraditoriamente foi produto dos próprios limites de uma das interpretações do marxismo brasileiro. O autor não conseguiu ir às últimas conseqüências no que se propôs, ficando no meio do caminho entre modelos dados aprioristicamente (que criticou de forma vigorosa) e uma análise realmente “concreta” da formação social brasileira. Não é por nada que priorizou o âmbito da circulação de mercadorias e não das relações sociais de produção na análise do Brasil colonial; não é por nada também que a sua dialética era uma aplicação sistemática e metódica através da observação, análise e interpretação dos “fatos sociais”, e não um pressuposto desses mesmos “fatos”, com dimensões objetivas e subjetivas simultâneas.



Tudo isso não invalida a conclusão de que para entender boa parte do “Brasil Contemporâneo”, é imprescindível conhecer a produção historiográfica, política e teórica de Caio Prado Júnior, como uma das mais originais sobre nosso País.


Nota


Este artigo é uma versão ligeiramente ampliada de “Uma idéia de revolução”, publicada originalmente no Caderno Cultura de “Zero Hora”, em 17 de fevereiro de 2007, p. 2.

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