Coveiros e defuntos

Onde estão meus amigos que, em uma grande comunidade estudantil, lutávamos pela expansão da educação pública?

Para onde se foram aqueles que, carentes de assistência estudantil, reivindicávamos energicamente a retomada das bolsas carência, profissional e de iniciação científica?

Que rumo tomou todos que clamávamos pela abertura de concurso público para contratação de professores e técnicos administrativos a fim de recompor uma década de defasagem e permitir a ampliação do ensino superior público?

Qual é o paradeiro de quem, em um passado não muito distante, destoávamos da política neoliberal que ameaçava privatizar o ensino superior no Brasil?

Muitos de nós ainda mantemos a coerência em torno das nossas antigas bandeiras com a luta atual em curso. Outros, no entanto, apagaram da memória o passado combativo contra a agenda liberal e simplesmente mudaram de campo.

Esse é um fenômeno curioso que, mesmo fartamente documentado e explicado na sociologia, espanta qualquer um que o vivencia mais de perto. É como se fosse uma amnésia de conveniência. Fica sempre a pergunta: como aquelas mesmas pessoas, que nas vacas magras lutavam para ascender socialmente, olvidam-se agora, nos momentos de bonança, daqueles que vivenciam suas mesmas privações do passado?

Bastou subir alguns degraus na escada fetichizada do “sucesso”, para querer passar graxa nos níveis debaixo e impedir que outros o alcance, pois no glamoroso mundo das excentricidades burguesas, o que vale mesmo é estar acima da maioria e ser notado distintamente.

Assim, quando assistimos o governo anunciar a retomada do Plano Nacional de Assistência estudantil e criar várias modalidades de bolsas – além de aumentarem-nas substancialmente em quantidade e valor -, muitos daqueles que ou foram bolsistas ou reclamavam do déficit de bolsas, hoje se voltam raivosamente contra tais políticas e as chamam pejorativamente de “assistencialista”.

O apagão cerebral é tão grande que, quando assistem a ampliação das vagas nas universidades públicas, que no passado subtraiu o sonho de vários de seus parentes e amigos, sentem-se ofendidos e se opõem energicamente à democratização do acesso, com um discurso elitista de que a universidade está, pasmem, “inchando”. No âmago de seus interesses mesquinhos, defendem a manutenção daquela universidade hermeticamente fechada e isolada das grandes massas, pacata (e “desinchada”) e sem a efervescência característica dos grandes centros do saber.

A tal “amnésia de conveniência” é tamanha que, quando o governo federal anuncia novos concursos visando a contratação em massa de servidores para a educação pública, os mais esquecidinhos voltam sua metralha contra a política “estatizante” do governo, ousando a afirmar que o Estado precisa ser mais eficiente e produzir mais com o que já tem.

Na verdade, nada do que esse governo fez ou fará conseguirá convencê-los de sua imensa superioridade em relação aos governos neoliberais passados. Não são mais os meus mesmos amigos dos ásperos tempos. Mudaram de casaca, de classe social. A cachaça de outrora virou motivo de chacota e, hoje, se viram como podem a disputar, uns com os outros, os uísques de melhor marca e maior idade.

Nada contra mudanças de hábitos e a preferência por consumo de bens e serviços de melhor qualidade. Pelo contrário. O que é deplorável é o consumo de ideias retrógradas e elitistas que impedem outros de terem as mesmas oportunidades.

Marx e Engels afirmaram que a burguesia criou também seu próprio coveiro: o proletariado. É de se pensar se os governos Lula e Dilma não criaram ou estão a criar seus próprios coveiros, ou seja, setores de uma classe média que ao serem resgatados da marginalidade econômica e social passam a incorporar valores burgueses bombardeados dia e noite por uma mídia privada venal e subserviente ao capital.

É necessário e urgente continuar melhorando a vida do povo. Mas sem desguarnecer a luta ideológica. O cadáver insepulto da pobreza extrema no país está prestes a ser enterrado. Outras chagas sociais necessitam ser sepultadas e precisaremos, para isso, saber identificar quem são os coveiros e quem são (e serão) os novos defuntos que rondam vagando por aí, tais como zumbis, a praguejar contra os que continuam vivos querendo um lugar ao sol.

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