Crônica fórmula de domingo

Aproxima-se o fim do ano, ano da copa do mundo de futebol realizada neste nosso país após 64 anos de copas em outros lugares que não aqui; ano também de curiosas temporadas de fórmulas automotivas nacionais e estrangeiras, mundial de voleibol e judô, entre tantos que se apresentam como preparos para nosso próximo grande desafio, chamado Olimpíadas do Rio, ali, em 2016.

O crônico, desta vez, fica por conta da última corrida de Fórmula 1 deste 2014. Corrida de carros monoposto que se deu na arenosa e exótica Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes, no Yars Marina. Autódromo planejado ao limite, à beira de um deserto e ao lado de algum mar manso, perfazendo um desenho sinuoso da pista muito bem cuidada, em harmonia com grandes edificações em curvas pontilhadas de piscantes luzes coloridas.

Estirado no sofá da sala, me peguei a pensar: caramba, essas cores dos automóveis rebrilhando os instantes de um sol a dormir no deserto, as placas de propaganda, algumas reais outras nem tanto, os quase hipnóticos desenhos azuis das imensas áreas de escape, os homens e mulheres a sorrir sem perder a seriedade nem a compenetração, seriam verdadeiros? Reais? Não estaria a assistir um jogo eletrônico comandado e planejado por algum excelente estúdio de animação?

Oras, o evento iniciava em hora prevista, o ganhador e os perdedores aconteciam em ordem quase precisa (ao menos era o vaticínio de todos os prognósticos), o público aplaudia, a audiência e o Galvão exultavam precisos, e a cada movimento da câmera outro comentarista dizia o que era também preciso: "grande temporada, uma das melhores dos últimos anos, com disputa até a última corrida". E eu, no sofá, feito beduíno de longas jornadas olhando para meus camelos, perguntava: muito bonito, muito legal, mas cadê o suor? As gotinhas salgadas de choro convulso ou sofrimento, onde foram?

Num dos "travelings" de câmera, percebo o inusitado atracadouro recheado de iates maravilhosos à beira da pista, com televisões enormes e gente bonita numa festa descontraída. Nesse instante acreditei que poderia encontrar alguém a torcer com emoção verdadeira e um tiquinho de suor. Esperei ansioso as últimas tomadas da marina, antes que dessem por encerrada a transmissão, mas não vi mais nenhum barco nem gente festejando.

Passaram-se instantes e na televisão HD surgiram os boxes e seus mecânicos, bem uniformizados e de capacetes limpos, a desfilarem robóticos pelo piso sem rastro de óleo, sequer estopa suja; uma nova e rápida tomada, agora dos auxiliares de pista vestidos de laranja, em seguida torcedores, e por fim os pilotos a saltarem dos carros. E nada, nem certezas maiores de que fossem reais ou que agissem de forma real.

Estourado o previsível champanhe, lá no alto do pódium, mostrava que haviam encerrado pontualmente o evento, revirei-me no sofá dando as costas à tela . O sorriso simulado das meninas a cercar os três primeiros colocados piorou a impressão. Quando lembrei que nos barcos poderia haver serventes e garçons, muito possivelmente imigrantes estrangeiros, como fui no passado, suando e correndo, mas sempre sorrindo para manter tudo em ordem. Não, não deveria me iludir, os xeiques e os dirigentes da FIA não deixariam, eles inventariam robôs, como nos Jetsons, para servir cafezinho sem suar e não pedir gorjetas.

Ano que vem, 2015, haveria outra temporada, e prometi a mim mesmo conferir, corrida por corrida se tudo era ou não real. Aliás, desde que mudaram o som dos carros para quase um zunido, não mais um ronco ensurdecedor, observo curioso o tamanho e detalhe dos carrinhos para ver se se aproximam de um autorama hiper-real. O que realizaria um sonho de criança com as pistas de plástico que levávamos tardes a montar, e devido a ausência de emoção, abandonávamos para buscar o ar livre nas brincadeiras de verdade. O que me lembrou Dostoiévski, no livro O Idiota, "a resignação é uma força terrível", e com isso dormi, e dormi sem bem lembrar, no fim das contas, quem havia ganho a corrida ou se algum brasileiro terminar a corrida.

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