Cronologia de um divórcio

Moro e Bolsonaro travaram uma batalha inócua, sem “abrir o coração um para o outro”, porque nunca estiveram na mesma página.

A última sexta-feira, 24 de abril, foi de grandes emoções no Brasil. Pela manhã, o então Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, conhecido por sua atuação na Operação Lava-Jato e símbolo do antipetismo, veio a público informar sua demissão e narrar os fatos que o levaram a isto. À tarde, o presidente Jair Bolsonaro, eleito na esteira desse mesmo antipetismo simbolizado por Moro, e que tinha no ex-magistrado um dos pilares da aprovação pública de seu governo, fez mais um pronunciamento em rede nacional para contar a sua versão da história. 

À noite, mais da metade do Jornal Nacional foi dedicada ao embate entre Moro e Bolsonaro. E o povo brasileiro assistiu, talvez não bestializado, como bem definiu José Murilo de Carvalho no século passado, mas desta vez, estarrecido, perplexo, abismado. E se não bastasse esse episódio novelesco, o mundo vive uma pandemia e o Brasil contabilizava, até então, mais de 3 mil mortos e quase 53 mil contaminados pelo coronavírus. 

Moro justificou sua demissão pela suposta interferência do presidente na Polícia Federal e terminou sua fala lançando ao público o slogan quase que eleitoral “fazer a coisa certa sempre”. Dentre as acusações feitas pelo “herói da Lava-Jato” ao “mito” estão a exoneração do diretor geral da PF, Maurício Valeixo, sem sua ciência e devido à preocupação do presidente com investigações conduzidas pelo Supremo Tribunal Federal que implicam aliados e até mesmo seus filhos. 

Horas depois, Bolsonaro nos brindou com a verborragia habitual, mas com o agravante do rancor colérico que exalava de sua respiração pesada. O presidente começou seu discurso dizendo que uma coisa é admirar a pessoa, outra coisa é trabalhar com ela; e que havia anunciado aos seus ministros, antes da coletiva de Moro, que eles conheceriam a pessoa que tem compromisso com seu próprio ego e não com o Brasil. A partir disso, dezenas de acusações e muita lavagem de roupa suja. 

Segundo Bolsonaro, Valeixo havia sinalizado o desejo de sair do cargo, Moro condicionou a troca da direção da PF à indicação para o STF, e sua demanda por informações não era interferência, apenas um pedido de urgência para assuntos relacionados ao líder da nação. Se não bastasse essa troca de farpas, Moro disponibilizou ao Jornal Nacional prints de conversas  com Bolsonaro e com a deputada Carla Zambelli, aliada do presidente, como provas. 

Mas o que essa sequência de episódios significa? Primeiro, uma rachadura na base de apoio à Bolsonaro. Ele foi eleito na onda do antipetismo, e seu governo foi formado a partir de indicações de militares, olavistas, lava-jatistas e do setor econômico; estes grupos de interesse estão materializados em seus ministros. A miscelânea antipetista, reunida exclusivamente para a ocasião da eleição presidencial de 2018, mostrou-se incapaz de atuar de maneira coordenada. Para onde irão os apoiadores que têm em Moro o baluarte da anticorrupção? 

A resposta de Bolsonaro foi visceral, confusa, e baseada em rancor e ciúme. Muito fígado e pouco cérebro até agora. Um dia depois da demissão de Moro e o núcleo bolsonarista ainda não tem uma estratégia. As vozes que sopram no ouvido do presidente são todas conspiratórias, sem uma resposta qualificada a curto prazo, os interlocutores do planalto estão agindo por conta própria.

Além disso, fica cada vez mais evidente que o presidente não consegue lidar com figuras que tenham tanta ou mais popularidade que ele, vide o imbróglio com o ex-ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, que saiu por divergências com o presidente mas em um contexto político absolutamente diferente. Mandetta não expôs os bastidores da sua saída, preservou as inconsistências de Bolsonaro. E o fez não por ser piedoso, o fez por ser do meio da política, algo que Moro não é e talvez nunca seja. 

Em segundo lugar, a demissão de Moro tem um importante cálculo eleitoral, diferenciar-se de Bolsonaro pode ser uma boa estratégia para capitalizar os votos do eleitorado de direita que não é radicalizado como os seguidores mais fiéis do presidente. É a conta que figuras como João Dória e Ronaldo Caiado têm feito também. 

E a narrativa de que sua decisão foi determinada por seu compromisso com o combate à corrupção é bastante sedutora, vide que a Rede Globo comprou de imediato esse discurso, como mostramos acima. Desde 2012 a emissora tem sido o canal oficial da força do judiciário contra o establishment político do país, e isto só se intensificou com os capítulos da lava-jato, impeachment, criminalização dos partidos, e tantos outros episódios que nos ajudam a explicar a vitória eleitoral da extrema-direita, que não pode ser atribuída à Bolsonaro. Ele é apenas o veículo de um movimento político muito maior, e como temos percebido, muito mais confuso do que a figura dele em si.

A rusga entre os dois só demonstra a incapacidade do Planalto de se impor como autoridade entre os ministérios. Ao longo de todo esse período Moro e Bolsonaro travaram uma batalha inócua, sem “abrir o coração um para o outro”, porque nunca estiveram na mesma página. Apesar de compartilharem o mesmo inimigo, tem motivações opostas. Moro atua pensando na sua própria reputação, e sob o signo do heroísmo imaculado, combatendo a corrupção sob qualquer custo, ainda que este custo seja participar abrir mão da carreira de magistrado e participar de um governo de extrema-direita. 

Já Bolsonaro confiou no ex-juiz a missão de agregar à sua agenda uma roupagem de credibilidade, deixando o governo vulnerável a um ator que, em poucas horas, mostrou qual o verdadeiro sentido do verbete “lealdade política”. O bolsonarismo perdeu uma sustentação importantíssima para se manter de pé, e o seu futuro está nas mãos do legislativo, de onde ele veio e quem ele tanto odeia.

O presidente, tão afeito à metáforas matrimoniais, agora terá que lidar com um divórcio duro com um ex-aliado de primeira hora. Quantos filhos terão de ser divididos após esta separação?

Artigo elaborado em coautoria com Hesaú Rômulo, cientista político, professor e colunista do Portal Vermelho.

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