De príncipes e sapos, lenda urbana

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A amiga não precisa sair dizendo que é fêmea para ser reconhecida. Apartamento amplo em lugar nobre. Carro importado. Conta bancária que cresce todos os dias. Vencedora. Deveria estar feliz, segundo o clichê da sociedade de consumo. Ter para ser. Confidencia-me, porém, mira desertos nos últimos tempos. O primeiro amor passou, o segundo, o terceiro. Dois matrimônios. Herança: os filhos lindos. Herança maior a solidão. Após o trabalho, gostaria de ir ao cinema, ao teatro, mesmo a um piano bar degustar um drinque e conversar. Pensa, às vezes, que contraiu algum mal contagioso. Um vírus só perceptível pelos homens. Ficam afastados, com poucas palavras. Recorda o tempo, ainda não tão distante, de certos rituais. Namoros carregados de símbolos. Um bilhete, uma cartinha, uma aliança de compromisso e uma aura de exclusividade. Transgressões, havia. Mas, no geral, vigia o jogo de cuidadosa aproximação, acelerando e freando para não causar solavancos ao coração. Não havia teste draive. Se tomasse a direção e acelerasse, acabava comprando o veículo, com a quase certeza de ser, de primeira mão, sem vício redibitório. Nostálgica, diz que ainda não se afeiçoou, nesta parte, aos costumes modernos. Ainda cultiva lembranças: chegava o cavaleiro de românticas jornadas. Fazia reverência à eleita, cobria-a de homenagens e mesuras. Mesmo que a deixasse ao amanhecer, derramada em lágrimas. A perspectiva de um novo encontro adoçava a taça da solidão. Agora, a solidão vem junta. No caso de chegar o imaginado príncipe, a memória invocando antigos climas, tem que despertar. O sonho não passa do umbral da porta. O desejado vai refocilando, espalhando lençóis, desatento às flores do vaso, ao perfume espalhado no ar, à taça de vinho. Toma de assalto as devassadas muralhas, engole suas preciosas viandas, derrama as taças, desarruma os móveis e sai sem palavra, ou: – Até logo! A gente se vê! Fica a sensação de atropelamento. Pedaços pela rua, fragmentos dispersos. Vai ajuntando outra vez as partes que não querem se pertencer. Só a custo, reúne os pedaços maiores. Nódulos nervosos, miúdos sentimentos e frágeis esperanças são levados pelos ventos, pelos pneus dos veículos, pela indiferença. Um sentimento antigo de nostalgia se intromete. Inveja a filha adolescente que lhe ensina novas palavras de um idioma que já não pode aprender: “- Primeiro a gente se pega, apalpa, desfruta. Pode ser só por um momento, por uma balada. Pega aqui, pega ali, não precisa nem saber o nome. Isso se chama “peguete”. “Ficar” é coisa também sem compromisso. Fica aqui, fica ali, em lugar nenhum. Afinal, de pegar e ficar pode surgir namoro. Permissão de dormir junto, na casa dele ou na casa dela, no motel, no carro, no acampamento, coisa e tal. Pode até ter compromisso: noivado, casamento ou ajuntamento. Dá no mesmo.” Não sabe se sente inveja ou deplora essas novas coisas. No fundo, ainda é uma sentimental à moda antiga. Alegra-se às vezes com algum rascunho de príncipe que se anuncie, ainda que no amanhecer desperte o sapo de sempre.

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