Democracia, participação e cultura (parte 1)

Esta introdução ao tema Democracia e Participação tem por objetivo superar as questões levantadas na série Algumas Palavras Sobre Cultura e Política, artigos publicados no portal Vermelho, entre junho e agosto de 2014, continuidade do texto sobre os infiltrados nas ruas publicado em 19 de junho de 2013 no Conversa Afiada.

A série anterior tratou das jornadas de junho, em uma perspectiva crítica, procurando trazer à tona o real da situação em meio a especulações e mentiras proferidas pelos articuladores da grande mídia, que procuraram inflacionar as manifestações e direcionar os discursos para seus fins. Com a pretensão de responder questões relacionadas aos acontecimentos das ruas, que colocam em xeque os valores sobre a democracia e participação, seguimos com o tema que irá nortear este novo conjunto de artigos.

A motivação das ruas, que aparentemente se apresenta como uma defesa da democracia contra a corrupção, revela-se apenas como um descontentamento de determinadas alas da sociedade, que foram às ruas, nas jornadas de junho de 2013, para gritar e levantar suas bandeiras. As massas, que eram significativas, não representavam 1% da população brasileira, ainda assim surpreenderam a sociedade, que de tão desacostumada a se manifestar acreditou estar diante de um grande movimento cívico.

Nas ruas estavam presentes, para além de uma ação em defesa de grandes causas ou movimentos consolidados, muitos outros pequenos grupos e indivíduos, que buscavam, através de seu ativismo efêmero, dar vazão aos seus desejos. Não existiam causas comuns para além do descontentamento com a política nacional. A lógica da ação coletiva, em uma massa formada por grupos heterogêneos, se traduz pelas vantagens que, individual e coletivamente, podem conquistar, e não apenas pela comoção social. Existe aí um cálculo mental individual de que a derrubada de um regime que beneficia outros pode lhes trazer benefícios. Hobbes, ao tratar da democracia em Leviatã, afirmava que um súdito diria que seu regime seria democrático se este fosse atendido em seus anseios, e que ocorrendo o contrário trataria deste regime por totalitário. A qualidade da democracia não poderia ser medida pelos desejos egoístas e vantagens daqueles que se sentem beneficiados ou não. Portanto, um critério subjetivo e pouco confiável para a classificação de qualquer regime político.

O fenômeno estudado trata-se de uma competição interna pela democracia, onde um grupo de classe média minoritário disputa mais espaço em um regime em que as classe altas e baixas andavam sendo mais beneficiadas, aparentemente. O descontentamento da classe média, diante daqueles que foram beneficiados pelos governos desde o começo do século XXI no Brasil, pode ser entendido pelas reclamações de que seus impostos geram bolsas família, supostamente usadas, sengundo alegam, para a criação de currais eleitorais e manutenção do coronelismo, enquanto a classe média obtém serviços públicos de má qualidade. Um discurso falso, pois a metade dos impostos gerados no Brasil vem das classes menos privilegiadas economicamente, enquanto serviço de má qualidade e impostos altos existem como princípio da eterna dicotomia entre liberdade e proteção nos Estados, que acumulam poderes prometendo benefícios que não serão realizados. Prometer e não cumprir é a própria essência do Estado. A efetivação de políticas públicas, a responsabilização do Estado, através de proposições agenciadas pela sociedade civil, é um dos maiores desafios da democracia. Apesar da ampliação da oferta da participação existente, não existem comprovações de efetividade.

Consolidou-se como pensamento na academia de que não existe solução para esse paradigma, devido ao “cobertor curto” para cobrir muitas despesas. Ao passo que o livre mercado não cria solução para as desigualdades sociais, segundo Keynes, não conseguindo, portanto negar a crítica de Marx sobre a exploração do trabalhador e da existência do Mais Valia em todas as relações de trabalho, produção e salário.

Nem mercado soluciona, nem Estado tende a efetivar o que promete. Portanto, as bases críticas dos manifestantes estão sustentadas em pilares falsos. O que rege são mesmo os desejos egoístas de uma classe contra outras, ignorando que as soluções precisam ser coletivas, almejando a harmonia, ainda que esta seja uma utopia.

Enquanto alguns pregam a urgência da ruas, como determinada por causas coletivas altruístas de grande comoção social, a disputa pelos benefícios no Estado se torna uma explicação mais provável do que a existência de qualquer movimento ideológico que estivesse na busca de criar alternativas políticas sociais a esquerda, negando não apenas o regime político, mas o sistema político. Prova disso são as negativas destas mesmas multidões à mini-constituinte e à lei de participação, um furo que revela a incoerência das massas, que clamam pela democracia e negam a participação e mudança das regras eleitorais.

Reclamam ainda pelos benefícios que estariam sendo canalizados para determinados públicos. Diante disso, para estes manifestantes o Estado não estaria fazendo seu papel democrático de atender a todos de forma igualitária, apesar das recomendações da ONU, que sejam tratados desigualmente os desiguais. As justezas das reclamações do público mediano não podem encobrir o sadismo e mediocridade de suas movimentações ao serem acompanhadas de ódio e solicitações de cortes de benefícios das famílias que quase nada tem.

Por conta dos desejos e busca de benefícios, as reclamações de muitos dos movimentos e ativistas foram direcionados ao sistema político e ao governo. Porém, pela falta de entendimento das relações entre Estado e sociedade, no método democrático que podem ocorrer através da escolha de lideres ou da participação, os descontentes retomaram a velha prática maniqueísta, do tudo ou nada. Jogaram todas as suas apostas no processo eleitoral de representantes, que eram os mesmos de sempre, procurando eliminar correntes ideológica opostas, ao invés da busca pela participação diária na cidadania.

A disputa eleitoral e o voto para a aprovação de líderes aos cargos legislativos e executivos se revelam um dos poucos instrumentos dessas multidões alienadas. A democracia representativa ao final se revela a única forma, embora a menos eficaz, desses cidadãos participarem, ainda que existam outras formas. Mas justamente os grupos que detêm o poder não necessitam da participação, quem exige participar são os grupos que não detêm direitos. Portanto, uma vitória no campo eleitoral, de grupos políticos aliados das forças econômicas majoritárias, leva a eliminação das forças sociais que desejam participar da democracia. A política soma zero (SARTORI) se consolida como o próprio cenário político eleitoral brasileiro no ano de 2014, tornado-se um “tudo ou nada” e um desejo de eliminação de partidos, classes, regiões, de forma nada sutil, ao procurar anular as chances de vida de seus oponentes e de todos que estão em outros campos ideológicos e políticos, atitudes dignas de uma nova conceituação para as classes médias, como fundamentalistas, e seus valores baseados no liberalismo, que precisam ser revistos como extremistas.

Após os fenômenos das jornadas de junho, e dos conflitos ocorridos nas redes sociais, se torna evidente a perda generalizada de referencias sobre o papel do indivíduo diante da democracia, bem como dos conceitos sobre democracia representativa e outra chamada participativa. A democracia torna possível a participação do cidadão, mas qual sua efetividade diante dos poder do Estado, e qual a capacidade de agenciamento das políticas públicas pela sociedade civil diante dos interesses das forças econômicas e políticas? Qual a capacidade dos cidadãos de participar? Diante de uma série de fatores, surgem questionamentos da qualidade da participação na democracia, esses tornam-se o ponto de partida que pode avançar um pouco no diálogo entre conceitos, teorias e visões do campo na ciência política, temas, entre outros, que serão abordados na nova etapa da coluna.

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