“Desonra”:Conflituosa criação do novo

Baseado na novela do escritor sul-africano J.M.Coetzee, filme do diretor australiano Steve Jacobs trata das relações entre brancos e negros na África do Sul, pós-apartheid

Na África do Sul, pós-apartheid, as relações entre negros e brancos transitam entre o alheamento e o jogo de aparências. Os primeiros vão aos poucos assumindo posições dignas de cidadãos sul-africanos, enquanto seus outrora opressores têm dificuldades para se adaptar ao novo status quo. Estes, no entanto, conservam sob seus domínios as estruturas de poder econômico que por mais de três séculos (1652/1994) lhes permitiram manter os nativos longe delas. Estes, porém, já não se acomodam ao antigo regime e criam espaços condizentes com as perspectivas sociais surgidas a partir de 1994. Os conflitos que emergem desta nova etapa histórica são mais complexos e doloridos, como mostra o diretor australiano Steve Jacobs, em “Desonra”, filme baseado na novela homônima do escritor sul-africano J.M.Coetzee. Neste, o professor de Literatura, David (John Malkovich), depois de uma série de seduções e impunidade, perde o emprego e se vê obrigado a reatar a relação distanciada que mantém com a filha Lucy (Jéssica Haines).

Existe muito de superioridade, de imposição ditada pelo cargo, na relação de Davi com sua aluna negra, Melanie (Antoinette Engel). Ele a atrai para seu canto, sem se importar com os sentimentos dela. Embora se retraia, ela sente-se impotente diante da insistência dele. São como senhor e escrava – esta não tem direito algum à recusa. Apenas quando o namorado dela intervém, estabelece-se a contradição – o direito de posse é esvaziado por um sentimento adverso ao que ele se acostumou: a sensação de impunidade. Percebe-se neste simples entrecho que as relações entre sexos e descendências opostos durante o apartheid não diferem muito ou talvez nada do registrado no período escravocrata nas Américas, inclusive, claro, no Brasil. E também o aguçado olhar de Coetzee, captado pela roteirista e produtora do filme Anna-Maria Monticelli, para expô-las de forma a não escapar ao público que se trata de uma questão de poder.

David usa seu poder  para seduzir a aluna

Coetzee foi, como Nadine Gordimer (“A Filha de Burger”), uma espécie de ficcionista militante cuja contribuição para o fim do apartheid continua inestimável. Nadine é mais direta, contundente, ele, no entanto, prefere o tratamento nuançado, sutil, como neste “Desonra”. David, feito por um contido Malkovich, preserva a superioridade de quem navega em águas turbulentas sem se importar com as consequências de seus atos. A frágil e indefesa Melanie, que busca abrir espaço como atriz e estudiosa de literatura romântica, não está preparada para suas investidas. Deixa-se enredar, até David ser denunciado. Quando ele se vê acuado, toda sua armadura se desmonta. Separado da mulher, em conflito com a filha lésbica, em frangalhos sentimentalmente, ele se vê tão encurralado quanto a estrutura de poder branco à qual pertenceu. Seus valores morais, em decadência, são insuficientes para livrá-lo de uma severa pena.

A maneira como ele se comporta diante da banca que examina seu caso atestam o quanto ele estava em conflito consigo mesmo. De repente, toda a estrutura que o serviu até àquele momento já não o protege. Tampouco seu conhecimento da literatura dos poetas românticos Bayron e Wordsworth. Ele, aos 52 anos, pende entre a maturidade e a terceira idade – seus dotes viris irão se esvair e terá de encontrar outras formas de sobrevivência. A maneira como admite a culpa pela sedução de Melanie dá a exata dimensão de seu dilema: terá de se reconstruir. Contribui para isto a forma como Malkovich o dimensiona. É um ser acuado, não pela bancada de professores, sim por suas próprias falhas. E o que vem a seguir só o comprovam. Irá deixar a vida acomodada, de superioridade, para a de desencontros, frente ao inesperado, ao desconhecido, ainda que conheça – ou ache que conheça – a filha Lucy.

Luta pela terra mostra conflito do novo tempo

O universo de “Desonra” a partir daí deixa de ser a da cosmopolita Cidade do Cabo (Capita Legislativa), David se transfere para o leste desabitado do país, com suas montanhas e campos agrestes. A paisagem captada pelas lentes de Jacobs, sempre em planos abertos, o diminui, o distancia do ambiente que o cerca. Tudo ali é longínquo, desconfortável. Seu reencontro com Lucy só não é vazio porque ela se mostra mais afetiva do que ele. David é frio, distanciado, sempre tenta dominar o ambiente sem mostrar sentimentos. Recebe notícias sobre a companheira da filha, que se foi; as relações com o parceiro negro, Petrus (Eriq Ebouaney), e a cultura de hortaliças e legumes que a sustenta. É um mundo adverso ao que ele vivia, portanto longe de sua influência. Também ele terá de aprender as regras daquele microcosmo. Este é cheio de nuanças, algumas explicitam como as relações entre brancos e negros assumiram outras características. Ele as percebe logo no primeiro dia, quando dorme e é acordado por Petrus entregue à ebulição de uma partida de futebol na TV. Este fica muito à vontade e pouco se dá pela presença dele.

Aos poucos, o espectador vai percebendo os detalhes, os fragmentos das mutações sociais na África do Sul. E, naqueles ermos, ocasionadas pelas mudanças de domínio que começam a ser estabelecidas sobre a terra. Naquele momento, ela pertence a Lucy, que, por suposta dívida com o passado, começa a transferi-la para Petrus. Este age como senhor da gleba, onde principia a criar cabras e demarcar sua área. Lucy, ao contrário de David, já se acostumou às sutilezas dessa transferência de poder. O ex-explorado passa a controlar partes do negócio e busca expandi-lo. Para David trata-se de uma ação agressiva demais, para ela, uma forma de compensação, quase uma mea culpa por décadas e décadas de marginalização e exploração de mão-de-obra e da própria mente do nativo. O ex-professor sente-se, então, deslocado neste ambiente de transição. Principalmente ao entender que Lucy faz o jogo de Petrus para manter seu espaço.

David não compreende comportamento de Lucy

Numa bela sequência que mostra o quanto ele se vê deslocado se dá quando acompanha a filha à feiralivre. Aquele é o habitat dela, dali tira seu sustento e está integrada. Ele, no entanto, não pode dizer o mesmo: é completamente estranho àquele ambiente. Ainda mais quando passa a ajudar uma amiga de Lucy no sacrifício de cães. Ele se afeiçoa a um deles e a forma como reage a esse sentimento confirma seu distanciamento e a perda de afetividade em relação ao outro. Comportamento que irá se aprofundar quando os conflitos entre o velho e o novo, os antigos senhores e os emergentes libertos, se mostrarem através de sequências que determinam a compreensão das relações sociais num país que reaprende a caminhar com as próprias pernas. São contraditórias as reações de Lucy – não age como alguém que foi brutalizada, estuprada, pelo contrário, se dedica a justificativas e compensações distantes da compreensão do pai. E pode desconcertar o espectador menos atento.

São sequências que atestam a validade do cinema como veículo de reflexão, não apenas diversão (ambas são igualmente válidas), Lucy esconde algo que David quer escancarar; punir pelas vias legais ou, num descontrole, usar as próprias mãos. O espectador também pode reagir às atitudes dela: por demais condescendentes. Todos os maus tratos centenários, brutalidades, massacres, perseguições, vêm à tona numa única frase dela: isso é normal, já vinha acontecendo, você não entende. Ela é ali não um personagem, um ser humano, violentado, sim um ente histórico punido pelo que fizeram seus ancestrais. As atitudes de Petrus o virão confirmar, embora não o justifiquem. Dá para pensar que se trata de um rito tribal, de o fragilizado ceder suas posses e seu corpo para o vencedor uma vez derrotado. Mas, não, a metáfora se sobrepõe à análise corrente e compreende-se quanto a ansiada tranquilidade custa a Lucy.

Assim, David recebe, de repente, a carga de seus males – e se transforma. É outro ser humano. O que antes lhe parecia normal, simples jogo de sedução, em que suas presas eram abatidas e não tinham a quem recorrer – agora ele se vê frente a frente com suas contradições. Como aceitar que, embora de maneira menos envolvente, sua filha seja submetida a tal violência? Não era violência usar de seu poder de professor para seduzir suas alunas? Ele entra em transe. Sua “Via Crucis” em busca de redenção é traçada por Coetzee, Monticelli e Jacobs em sequências quase sacras ao colocá-lo diante da família de Melanie. Quer o perdão. A indiferença dói mais. Ele não o obtém da própria ex-aluna, dado ao embate estabelecido com o companheiro dela. O que consegue está mais próximo do escutar, servindo-lhe pelo menos de consolo.

Filme só pode ser visto em DVD

“Desonra”, ao que conta não foi exibido nos cinemas brasileiros, chega ao espectador em formato de DVD. Quase passa despercebido, só escapando pela garimpagem que sempre deve ser feita quando seu destaque é dado pela obra de mestres da dimensão de Coetzee ou por atores como Malkovich, embora este às vezes figure em dramas ou policiais obscuros. Mas o que vale é sua contribuição ao entendimento de um povo, cuja história teve um entreato marcado pelos colonialismos holandês, inglês e alemão, responsáveis pelo brutal sistema de marginalização, exclusão e racismo que o vitimou. As chagas permanecem abertas, com difícil cicatrização, como demarca o filme. David, embora não aceite o comportamento da filha, se vê como esteio do que ela tenta esvaziar, reconstruindo sua vida, ainda que sobre os escombros de algo inaceitável para ele. Mas, no entanto, começa a perceber as transformações político-sociais e não terá como não adaptar-se a elas.

A saída encontrada por Jacobs para mostrar o princípio da convivência entre dois universos aparentemente contraditórios é pela imagem da arquitetura que os opõe. A casa de Lucy, com seu estilo clássico, tem os telhados, as paredes, as janelas descascadas, manchadas, enquanto a casinha de tijolo de Petrus tem um telhado colorido, novo, que se destaca na paisagem. Um elogiável achado dramático, no qual o espectador deve se deter para perceber que o filme trata de algo para além do mostrado. Os personagens estão ali como entes históricos, reflexos da retomada de um processo sócio-político que apenas se iniciou. E se trata tão só de um microcosmo que encerra um universo muito mais amplo. David desconcerta-se com a tranquilidade com que Lucy o aceita: ela talvez não tenha outra opção. A terra na qual continuará a morar lhe pertenceu até certo ponto – agora a divide com Petrus e seus descendentes, inclusive o que traz no ventre. A partir daí um novo ciclo terá início.

“Desonra” (“Disgrace”). Austrália/África do Sul. Roteiro: Anna-Maria Monticelli, baseada na obra homônima de J.M.Coetzee. Direção: Steve Jacobs. Elenco: John Malcovich, Jéssica Haines, Eriq Ebouaney, Antoinette Engel, Fiona Press.

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