Devemos linchar virtualmente os fraudadores de cotas?

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Acompanhei nos últimos dias uma cruzada contra fraudadores de cotas raciais nas instituições de ensino universitário do país, pois lidar com o coronavírus não elimina as outras quimeras que o Brasil tem enfrentado ao longo dos tempos.

Quando o vírus se instalou, estávamos numa batalha sobre o acesso ao ensino superior, principalmente contra um projeto rudimentar de desmonte das universidades públicas. Essa campanha intensificou com as medidas adotadas pelo Ministério da Educação, que age em desfavor à pauta que deveria estimular.

No meio de tantas batalhas campais, levanta-se esta que aborda pessoas fenotipicamente brancas, ou não negras, utilizando-se de um pressuposto falso para entrar na universidade pública. Um ponto gravíssimo aqui é o de, ao entrar indevidamente, impedir que alguém que realmente precise da vaga não consiga o acesso.

Agora imaginemos: qual o propósito da universidade pública? Além disso, qual deveria ser o debate fértil a respeito das cotas e do papel dessa universidade na redução de desigualdades no país? Toma-se a formação de profissionais (advogados, engenheiros, historiadores, professores, economistas, médicos etc.) apenas do ponto de vista individual. Como se a passagem pelos bancos da universidade pública fosse uma jornada pessoal em que cada um está em busca “do seu”, do ganho pessoal, e de um ofício que resolva problemas de foro íntimo.

Na verdade, o entendimento que os egressos da universidade pública têm um compromisso com a sociedade de forma geral é pouco difundido. Ou mesmo que os louros da formação acadêmica não estão restritos às vanglórias privadas ou certificados emoldurados na sala de estar dos diplomados.

É com esse sentimento que os brasileiros fraudam o sistema de cotas, ao passo que vociferam que o país desandou por conta da corrupção. É com esse sentimento que se engrandecem das dificuldades sofridas na graduação, enquanto usurpadores de políticas públicas, críticos daqueles que recebem benefícios do Bolsa-Família também de maneira indevida.

O que está por trás dessa mentalidade nada mais é do que a certeza de que o Estado tem um débito com todos, de que o Estado precisa me servir, suprir as minhas necessidades. A estrutura do Estado à minha disposição coloca o indivíduo no status de quebrar as regras, mas objetivando ganhos pessoais na expectativa de que eles, por si próprios, justifiquem crimes.

Por outro lado, me causa desconforto que as estratégias mais eficientes a serem adotadas para a denúncia desse tipo de situação seja justamente o escracho público. Faço referência aos perfis criados em redes sociais para “exposição” e “cancelamento” dos envolvidos na fraude.

A consequência imediata é a sentença sumária, por parte do tribunal da internet, acompanhado de perseguições individuais e toda variedade de xingamentos possíveis. Entendo que o apropriado nesses casos é a suspensão da matrícula/diploma ou qualquer outro impedimento de seguir no curso, uma vez comprovada a fraude por parte dos órgãos responsáveis. Nesse tempo, e tendo em vista a morosidade e falta de credibilidade que o brasileiro médio dispõe sobre nossas instituições, a “única” saída realmente efetiva para o problema é a destruição completa da reputação de quem quer seja.

O apelo autoritário da sociedade civil que, além de denunciar a injustiça precisa corrigi-la com as próprias mãos ou com o teclado, descarrega as frustrações inteiras no indivíduo, em vez de propor algo eficiente no que diz respeito à formulação ou aperfeiçoamento de políticas públicas de ações afirmativas, que são extremamente necessárias e que correm o risco de perderem força com o discurso “olha aí, provocam mais distorções porque ninguém respeita mesmo”.

Mesmo entendendo que o sangue corre quente ao confrontar formas difusas de corrupção, precisamos separar as coisas e investir energia, também, naquilo que vai garantir educação de qualidade para as próximas gerações.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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Um comentario para "Devemos linchar virtualmente os fraudadores de cotas?"

  1. Dali Rocha disse:

    O texto não responde nem encaminha pra pergunta-título. Pessoalmente não acredito que o cancelamento e exposição resultem em algo útil. Quem tem que julgar e dar o veredicto são as instituições. A exposição gera um falso senso de justiça, além de gerar condenação sem julgamento. Se torna tão inconstitucional quanto o fraudamento. Além do mais dispersa e tirou atenção dos movimentos anti-racistas que acontecem pra focar em algo que nenhum órgão estudantil ou coletivos criticaram/inspecionaram na época das matrículas. No meio de uma pandemia que força o fechamento das universidades qual o sentido dessa exposição? O resultado acaba sendo somente a desconfiança e descrédito na Universidade e instituições. Isso parece fazer justiça, mas o efeito que permanece é a descrença na República.
    As grandes cabeças a serem cortadas permanecem seguras lá no castelo, enquanto nos estapiamos por motivos errados. Precisamos seguir ATENTOS e FORTES pra não cairmos nas arapucas.

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