Dívida pública e o poder do dólar

Desde o período da acumulação primitiva durante o século XVI, a união entre o Estado e o capital se constituiu numa relação imprescindível para o estabelecimento e fortalecimento do capitalismo. Nesta antiga relação, o advento do sistema de dívida pública

A dívida pública não pode ser considerada uma anomalia do sistema como pretendem certos economistas. Nem muito menos significa fraqueza de um Estado, senão a sua força. Conforme indicava Marx, a dívida pública logo se tornou o credo do capital. “A dívida do Estado fez prosperar as sociedades por ações, o comércio com títulos negociáveis de toda espécie, a agiotagem, em uma palavra: o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia”. E ainda, “com as dívidas do Estado surgiu um sistema internacional de crédito, que freqüentemente ocultava uma das fontes da acumulação primitiva deste ou daquele povo” (1).



De fato, a dívida pública costuma ser bastante providencial para o capital. Nos momentos de alto desemprego, quando não há escoadouro para os lucros acumulados, os títulos do governo se transformam em porto seguro para o dinheiro que não pode ser investido produtivamente. Há também as intervenções através das chamadas “injeções de liquidez” do governo, que na realidade nada mais são que recursos públicos direcionados para evitar a falência de grandes empresas. São gastos do governo que aumentam a dívida pública e socializam os prejuízos, mas que se escondem através de expressões concebidas para fazer crer que não se está colocando em jogo o dogma das finanças equilibradas (2).  



O caso especial dos EUA



A brutal expansão da dívida pública norte-americana no plano internacional no último quarto do século xx foi um dos principais acontecimentos da história da economia mundial. Em contraste com a sua condição logo após o fim da segunda guerra mundial, durante a década de 1980 os EUA se transformaram nos maiores devedores do mundo. Desde então, vários autores concluíram deste fato um inevitável abandono do dólar e, por sua vez, o fim da hegemonia dos Estados Unidos.



Os países da periferia sabem muito bem o fardo que a dívida externa tem sobre suas sociedades. No entanto o caso dos EUA é singular, pois o dólar ocupa o lugar central nas transações comerciais e financeiras internacionais. Mais do que nunca, os títulos da dívida pública norte-americana são os principais ativos do sistema financeiro internacional e o seu sistema financeiro é o espaço vital para reprodução e valorização do capital em todo planeta, espaço privilegiado da haute finance. Como é notório, esta condição gera enormes vantagens para os EUA, permitindo o financiamento de um gigantesco déficit em transações correntes, já que praticamente todo seu passivo externo e todas as suas importações de mercadorias são denominados em dólares. Assim, o dólar é uma moeda nacional, mas que desempenha a função de moeda internacional, ainda que nenhum acordo multilateral tenha sido realizado para este fim.



É impossível para os EUA não possuírem recursos para pagar suas dívidas enquanto estas forem pagas em dólar. Trata-se de um caso peculiar na história das relações internacionais, em que um país estabelece a taxa de juros sobre sua própria dívida externa (3). Infelizmente, essa brutal assimetria é bastante minimizada nas análises correntes. Conforme muito bem disse Hudson, desde a quebra do padrão dólar-ouro em 1971, os EUA vêm obtendo o maior free lunch da história a expensas do restante do planeta (4). 


Além disso, qualquer mudança na política econômica dos EUA transborda imediatamente para o plano internacional, levando a oscilações nos preços dos ativos financeiros, o que obriga os demais governos a tomarem medidas defensivas de política econômica.



O dólar continua sendo a moeda no topo da hierarquia e não há evidências que deixará de ser num futuro próximo. Isto pôde ser confirmado mais uma vez quando em outubro do ano passado a crise do subprime chegou ao seu auge e o dólar passou a se valorizar, surpreendendo vários economistas. Entre outros fatores, a valorização do dólar foi decorrência do forte aumento da demanda pelos títulos do Tesouro norte-americano por parte dos investidores e dos bancos centrais (5), ainda que os juros estivessem sendo reduzidos. Isto prova que o dólar continua sendo o refúgio mais seguro do sistema financeiro internacional mesmo quando a maior e mais grave crise do capitalismo desde a quebra da bolsa de Nova York em 1929 é no próprio EUA!



Notas



(1) MARX, Karl (1996). O Capital. Os Economistas. São Paulo: Nova Cultural. p.374



(2) CARVALHO, Carlos Eduardo (2008). “A intervenção estatal na crise e o chamado neoliberalismo. Valo Econômicor, Opinião, 11 de dezembro.



(3) SERRANO, Franklin. “Do ouro imóvel ao dólar flexível”. Economia e Sociedade, Campinas, v.11, n.2, pp.237-253, jul./dez.2002.



(4) HUDSON, Michael (2003). Superimperialism: the origins and fundamentals os US dominance. 2º edition, Pluto Press, London.



(5) SLATER, Joanna (2008). “Dólar foi bem durante turbulência, mas alta pode estar perto do fim”. Valor Econômico, Wall Street Journal, 20 de outubro.

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