“Dor e Glória”: Fechado em si mesmo

Com equilíbrio e leveza, cineasta espanhol Pedro Almodóvar mergulha nas reminiscências de cineasta idoso e seus impasses no universo LGBT.

Com espantosa naturalidade, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar (1949) retoma seus temas autoreferenciais, como se os tempos de homofobia e violência contra os gays tivesse ficado para trás. Neste “Dor e Glória”, o personagem do escritor e diretor de cinema Salvador Mallo (Antonio Banderas) é construído não como integrante do universo LGBT, mas como um artista em decadência. Menção alguma é feita à sua tendência sexual durante nos 99 minutos do filme. A narrativa é sobre a memória, os impasses e as frustrações de um intelectual chegando à terceira idade.

É, portanto, elogiável que assim seja, pois se não denuncia a doentia homofobia a grassar nos meios conservadores, mostra que nada há de pecaminoso, deficiência e má conduta nos que pertencem ao terceiro sexo. A decadência de Mallo não deriva de sua condição sexual, decorre mais de suas opções, dentre elas o abandono da carreira quando estava no auge. Ainda assim, ele se prende às suas reminiscências, estruturadas em flashbacks por Almodóvar, a partir de seu reencontro com o amigo ator Alberto Crespo (Assier Etxeandia), com o qual há muito estava rompido.

Ao invés de pontuar a transição de Mallo para a terceira idade com imagens de seu tempo de aclamado cineasta, Almodóvar estrutura a narrativa em torno de fatos que influenciaram sua existência desde a infância. De suas relações com a jovem mãe Jacinta (Penélope Cruz), o despertar do desejo na infância e a amizade com o jovem pedreiro e já na maturidade sua conflituosa convivência com a idosa mãe (Julieta Serrano) e o amigo e parceiro Crespo. E assim foge à narrativa linear, ao mesclar épocas para dar sentido ao Mallo do presente, embora ainda recluso.

Mallo vê-se como centro das atenções

É neste vai-e-vem entre o hoje e o ontem que Almodóvar atrai o espectador para uma narrativa em leque que se abre e fecha. Sua câmera não interfere na ação, apenas registra o que mescla o presente e o passado. E com agilidade, leveza e precisa montagem que torna os entrechos ainda mais instigantes. As sequências são curtas, os cenários em ambientes internos e com raras cenas externas. Trata-se, como se vê, do fluxo de memória que vai da infância ao amargo instante de solidão em que Mallo convive com seus escritos no apartamento numa Madri dos anos 80.

Como velho ídolo, Mallo vê-se de novo o centro das atenções do público. Não por seu presente, é o passado que o rege de forma assustadora, pois se recusa a retomar a carreira de cineasta. Dá-se então o embate entre o que ele quer esquecer e a persistência de sua aclamada obra pela nova e a velha geração. Deste modo Almodóvar pontua a força da memória coletiva tão negligenciada nestes tempos neoliberais, por opção da extrema direita. Contudo, Mallo, ao contrário da insistência de sua secretária Mercedes (Nora Navas) e de Crespo não busca o recomeço.

É esta tendência ao ostracismo que o torna enigmático, ao contrário da Norma Desmond (Gloria Swanson,) de “Crepúsculo dos Deuses (1950)”, de Billy Wilder (1906/2002), que sentencia: “Ainda sou grande; os filmes é que encolheram”. Nada disso ocorreu com Mallo. Está mais para o artista que vê sua criatividade em crise e seus temas fora de época. E além de tudo lhe falta energia e interesse, para não dizer inspiração para retomar a carreira. Entregou-se a outra forma de manter-se ativo, como Crespo vem a descobrir, após décadas afastados um do outro por desavenças.

Almodóvar linca as proletárias de Mallo

Esta é a forma encontrada por Almodóvar para atrair o espectador para as muletas químicas, aparente solução para ídolos decaídos como ele. Entra num êxtase-químico a assustar o próprio Crespo e Mercedes. A droga não só leva Mallo à dependência (olha a metáfora exposta por Almodóvar), como torna-o ciente de sua decadência. E o faz entrar num redemoinho em que perde o controle de si mesmo. É nesta conexão entre a dependência e a retomada da amizade com Crespo que ele atenta à razão de o amigo persistir em o reconectar ao mundo das artes dos anos oitenta.

Há, no entanto, relação entre este instante e o passado a destacar o que Mallo se tornou, sem que Almodóvar o explicite. É a dialética a lincar as raízes proletárias do cineasta à hesitante alta classe média. Na infância e juventude, ele sempre viveu sob a influência da mãe Jacinta (Penélope Cruz), agora faz suas próprias escolhas. No entanto, lhe resta apenas a eficiente Mercedes a cuidar dele, evitando que seu estado de saúde tenda a deixá-lo em grave estado. Desta forma, Almodóvar reafirma o papel da mulher em sua cinematografia (Fale com ela/2002). São sempre fortes.

É com Jacinta que o garoto Mallo trava o mais significativo diálogo deste “Dor e Glória”, Por viver sempre na expectativa de o companheiro (Raúl Arévalo) lhe remeter o dinheiro para sustentar a si e o filho, ela se desdobra para educá-lo a contento. E o único meio é inscrevê-lo no coral do seminário católico, onde o padre é rigoroso com os alunos. Lá aprenderá não só o básico, como também canto para integrar o coral. O conselho dela é lapidar: “Esta é a única maneira de os pobres estudarem!”. A forma como o pequeno Mallo se recusa a se matricular mostra o quanto estava atento às exigências da Igreja Católica. “Não, eu não quero ser padre”.

Mallo acerta contas consigo mesmo

De explicita forma, Almodóvar dá conta das razões da ausência do pai. Trata-se de operário ambulante a pular de cidade em cidade para sustentar a companheira e o filho. Por isto deixa-os num vilarejo enquanto trabalha numa obra e lhes remente o sustento. Almodóvar monta cenários realistas na periferia dos lugarejos, para atestar as carências dos deserdados espanhóis. As casas nas quais vivem assemelham-se aos barracos da periferia das grandes cidades brasileiras: sem esgoto, água, escola, posto de saúde. Quando ele retorna à casa é como um estranho, que fica pouco com o garoto, deixando à Jacinta duplo papel de pai e mãe.

Não se pode negligenciar a excelente estruturação da narrativa por um Almodóvar disposto em desvendar as motivações de Mallo para entregar-se ao acerto com seus demônios. Não só os reais, como também os imaginários. Dentre eles está a convivência com a idosa Jacinta. É o tipo de confronto que magoa a ambos por não externar nem o carinho nem o reconhecimento do que um fez pelo outro. Portanto, estas são as razões dos impasses do Mallo às voltas com a terceira idade. Não há mais razão para ele se derramar em culpas, porquanto só aos vivos cabe o acerto.
Igualmente frustrante é Mallo lembrar-se de não ter levado adiante sua relação com Federico (Leonardo Sbaraglia). Ainda que fugaz lhe deixou inescapáveis lembranças. Almodóvar constrói um sorridente ex-caso, feliz com a vida. Entretanto, cada a seu modo reconstruiu sua vida e agora se apega mais ao que se tornaram. Devido as brasas terem se tornado cinzas, ambos deixaram as reminiscências amorosas ditarem o que terão de fazer para esfumar o passado. E em se tratando de Mallo foi como se apagasse um momento de sua vida cuja reconstrução não reporia sua juventude.

Almodóvar estrutura Uma obra feminista

Almodóvar fecha cada subtrama de forma a ressaltar o que atormentava Mallo. É na terceira parte da trama que o personagem central se desdobra para desmontar sua hipocondria, de forma a não sucumbir aos males reais da aproximação da terceira idade. A ativa e protetora Mercedes é, mais uma vez, a mulher a contribuir para ele não fugir de si mesmo. Uma eficaz forma de reafirmar o papel das mulheres em sua vida. Cada uma a seu tempo preenche o espaço já ocupado pela outra, como se Almodóvar atestasse o quanto o homem depende da mulher. Não é demais dizer que este “Dor e Glória” é uma obra feminista, a atestar a importância da mulher.

De qualquer forma, o desfecho da narrativa leva Mallo a interagir com seu novo público de forma a mostrar-se menos. O que importa para ele é sua obra desvendada por seu parceiro e amigo Crespo. É quase apoteótico, não fosse a forma como o crepuscular cineasta renasce para as artes. Nele há mais do que reencontro com as novas gerações, mas a certeza de que ainda consegue se valer da criação artística para dar conta do que ainda tem a dizer para si e seu público e sobretudo para reviver.

“Dor e Glória”. (Dolor y gloria)
Drama. Gênero. Espanha.2019. 99 minutos. Trilha sonora: Alberto Iglesias. Montagem: Tereza Font. Fotografia: José Luis Alcaine. Roteiro/direção: Pedro Almodóvar. Elenco: Antonio Banderas, Penélope Cruz, Asier Etxeandia, Leonardo Sbaraglia, Nora Navas, Julieta Serrano, Raúl Arévalo. Raúl Arévalo

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