Dor mandada

            – Ele deve morrer logo!

            – O matador já foi contratado…

            – Sem testemunha?

            – Com ou sem testemunha. Nenhuma investigação vai chegar até nós.

            Mocinha serviu o licor e embutiu no juízo a trama para matar o advogado. Os homens, donos de engenhos, confiam no soldo pago à polícia. Mocinha veste-se de copeira; compõe-se servil, muda, submissa ao mando de Cremildo. O velho, sentado na cabeceira da mesa no terraço dos fundos do casarão, pendurara o chapéu antes de falar; o gesto servira para pronunciar a autoridade, expor os fios grossos do bigode sem a sombra dos feltros do chapéu. Os outros, mais moços, imitaram-no; puseram no cabide os chapéus, abaixo do de Cremildo, pondo em relevo a hierarquia do canavial. Ludmila, a senhora do engenho, sabe de cor os costumes, herdara-os dos tempos do mel tirado da cana, da rapadura endurecida na fôrma; do velho Serafim Correia, seu pai, de feição austera à mostra no retrato em branco e preto, na parede, sobre a cabeça de Cremildo. De resto, tem no rosto uma lanugem fina, escura, como um buço que não crestara.. Não se mete nas decisões do marido, convencera-se de que assim também os criados se sujeitariam.

            Os morcegos voam sobre o telhado do quarto onde Mocinha se mantém refém dos bichos, dos hierarcas da casa. Sente-se pinicada, não dorme. Na noite seguinte, esperou o fim do jantar. Saiu como de costume, para uma oração na capela ou à prosa miúda num banco de praça, ali perto, em Goyaninha. Entra no convento das freiras carmelitas, chama a irmã Amélia.

            – Pelo amor de Deus, irmã…! Não diga que foi eu que disse, mas é certo que vão matar doutor Jerônimo. Ele é moço e bondoso, não merece morrer tão cedo!

            – Volte para casa. Reze pela vida de doutor Jerônimo. Ele pode se salvar.

            Mocinha, devota, reza para o advogado e para si. Irmã Amélia, no oratório escuro, percorre as contas do rosário, olhando com fixidez a luzinha vermelha do Sagrado Coração. De manhã, depois de um módico cuscuz com leite, foi ao quarto da superiora; tem um olho na madre e outro na imagem de Nossa Senhora envolta num rosário. Como na reza, balbucia o conluio que ouvira.. Obtém da madre licença para romper a clausura. Vai à casa do advogado, insta-o a conseguir proteção.

            – Vá a padre Fernando. Peça que abençoe a sua casa com reza e com incenso. Também no seu escritório. Ninguém vai tocar no senhor.

            Jerônimo, rápido, vai ao sindicato. Ouve de Jessiê, o presidente:

            – Vamos convocar assembleia, instruir os delegados a espalhar a notícia. Se tocarem no senhor, vão receber o troco.

            Quando encontra com o administrador do engenho do velho Cremildo, diz:

            – Se tocar no doutor Jerônimo, nós vamos tocar fogo no canavial!

            A trama seguiu no mesmo terraço, à sombra do retrato de Serafim Correia. Mocinha, servindo o mesmo licor, ouve:

            – Como souberam?! Desta casa os criados só saem para rezar…

            Mocinha recolhe à cozinha, os lábios tremelicando; de costas à reunião, cresse infeliz, maginando irmã Amélia na clausura, protegida das ruindades dos homens. À noite, pela porta semiaberta do escritório, vê o patrão entregar um revólver ao administrador. O susto cresce, sente o tropel do coração. Corre para o seu quarto, acende a luz, apaga quando vê o vulto do administrador no oitão do casarão, entregar o revólver a Simplício. Logo ao namorado que lhe prometera casa, longe do senhorio da Dona Ludmila. A desgraça bate-lhe na porta, inda que sem a casa.

            No domingo, na Procissão dos Passos, reitera os votos de confiança no santo padroeiro. Doutor Jerônimo se pusera na frente, próximo a padre Fernando.  O pároco nada soubera. Simplício desce da calçada, rumo ao advogado. Meu Deus! – grunhe Mocinha. Sem ver a arma, Jerônimo pressente-o, lê o fito de morte nos olhos do pistoleiro. O padre, atento a exorcismos, unge-os com água benta. A água que salpica o advogado, respinga em Simplício. Amotina-se dos urdumes de morte, ele, sentindo um fogo nas entranhas, feito uma dor mandada. Corre na direção contrária à procissão, esbarrando em beatas velhas.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor