"Elles”: Divisão de tarefas

Filme da cineasta polonesa Malgorzata Szumowska usa experiências de garotas de programa para discutir crise nas relações conjugais

Os homens soltam suas fantasias com as garotas de programa. Com suas companheiras são pudicos, sem imaginação. “Elles”, elas em francês, refere-se, na verdade, a eles, ils, os caçadores que usam escritórios e quartos de hotéis para, em encontros furtivos, dar vazão às suas taras. Às vezes perdem o controle e desandam em violência. É sua forma de escapar à repressão sexual, aos condicionamentos sociais, às frustrações maritais. Nem por isto deixam de serem românticos, sedutores, paternais. Seres comuns.

Muitos deles enfrentam a crise da meia-idade. As garotas de programa lhes devolvem a sexualidade perdida. Como na nostálgica sequência em que um deles canta “Folhas Mortas”, de Jacques Prévert, ao violão para a imigrante polonesa Alicja (Joanna Kulig). Não há como não se emocionar. Ou se sensibilizar com o executivo que de repente cai num convulsivo choro perante a perplexa francesa Lola/Charlotte (Anaïsa Demoutier). É o macho em seu ocaso. Elas são para eles mais do que objeto sexual, são suas mudas confidentes.

Suas histórias brotam dos depoimentos de Lola e de Alicja à jornalista Anne (Juliette Binoche) para a revista feminina francesa Elle. O que resulta daí é um filme de duplo vértice. A cineasta Malgorzata Szumowska e sua corroteirista Tine Byrckel usam as situações vividas por elas para situar a vida conjugal de Anne. Ela passa o dia dividindo-se entre tarefas domésticas e jornalísticas. Sua convivência com o companheiro Patrick (Louis-Do De Lencovesaing) e os filhos Florent e Stéphane é fugaz. E cada detalhe do cotidiano de Alicja e Lola com os clientes confirma sua modorra conjugal.

Matéria muda vida de Anne

Em princípio são as fantasias dos clientes das entrevistadas que a atraem. Depois começam a perturbá-la. Já não controla o que registra. É tão forte que sua carga sexual reprimida leva-a a procurar compensá-la. Tenta satisfazer-se consigo mesma sem sucesso. Nestes entrechos, Szumowska se prende às garotas de programa e como estimulam as fantasias dos clientes sem culpa ou repressão. Chegam a ser maternais. Já Anne não consegue esconder seus traumas. Tudo à sua volta a aborrece. E a matéria passa a conduzir sua vida.

Numa ilustrativa sequência, ela se deixa seduzir pela envolvente Alicja. Música e carícias atestam suas carências. Aos poucos, ela descobre em que se transformara sua vida. As jovens, em seus depoimentos, falam dela, de Patrick e de seu casamento que, há muito, se romperam. Inclusive sua relação com Florent, o filho mais velho. Para salvar sua relação com o companheiro, ela se vale dos métodos usados por Alicja e Lola e é repelida. A atitude dele é a mesma dos clientes delas: a companheira é sempre pura.

Ela, Anne, então se vê num impasse. Já não separa realidade, vida conjugal e fantasias. Os clientes das entrevistadas viram fantasmas. Numa sequência ela os vê à mesa, tomando vinho e ouvindo “Folhas Mortas” com Patrick. O mais violento deles encara-a cheio de lascívia. Eles são o que ela deve expurgar de sua vida conjugal. Não deixa de ser uma crítica às exigências feitas às mulheres de que a elas cabe tudo. Inclusive salvar o casamento.

É nisto que “Elles” se diferencia dos filmes que tratam da prostituição. Em sua maioria têm a visão moralista, burguesa-cristã, de descida aos infernos. São depressivos, eivados de pecado. Szumowska dota sua obra de forte sensualismo, enquadrando corpos femininos e masculinos sem meios tons. Tampouco põe Lola e Alicja como vítimas. Elas apenas fizeram suas escolhas e se sentem bem com elas. Surge daí um filme provocante, erótico, adulto.

Sociedade divide papéis sexuais

A prostituição, como se vê, não é o eixo central do filme. Szumowska usa-o para falar das relações conjugais e familiares. O desfecho bem o comprova. É quando suas intenções ficam claras. É preciso criatividade para sustentar um casamento. Também discute as opções das adolescentes e as armadilhas que o sistema capitalista as submete. Lola é de família classe média, que se esforça para estudá-la. Os empregos que encontra não lhe garantem futuro e pagam mal. “Ganho mais com meus programas (citação não literal)”.

Com Alicja não é diferente. Saiu da Polônia para estudar em Paris. Viu no sexo a forma de resolver seus problemas. “Tive sorte, estou aqui há pouco tempo e já tenho meu apartamento”, diz a Anne. Seu jeito de menina, sua fala desinibida e sem culpa, mostra consciência do que faz. Não é de forma alguma penoso para ela. Na juventude tudo parece mais fácil. A questão é que quanto mais amadurece, menos o telefone toca e os riscos crescem.

A contribuição de “Elles” é este olhar sobre como os homens escapam ao tédio da vida conjugal e como a sociedade burguesa divide as atribuições das mulheres. Existem as que são esposas e as “prostitutas”. A mercadoria destas continua sendo o corpo. Quanto às companheiras não lhes é permitido ser engenhosas na relação sexual sob o risco de serem punidas. Algo precisa ser ajustado, sob pena de ambas serem estigmatizadas pelo que não criaram.

”Elles”.
Drama. 2012.
França/Alemanha.
110 minutos.
Fotografia: Michal Englert.
Roteiro: Tine Byrckel/Malgorzata Szumowska.
Direção: Malgorzata Szumowska.
Elenco: Juliette Binoche, Joanna Kulig, Anaïse Demoutier, Louis-Do De Lencosvesaing.

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