"Elles”: Divisão de tarefas
Filme da cineasta polonesa Malgorzata Szumowska usa experiências de garotas de programa para discutir crise nas relações conjugais
Publicado 09/11/2012 12:44
Os homens soltam suas fantasias com as garotas de programa. Com suas companheiras são pudicos, sem imaginação. “Elles”, elas em francês, refere-se, na verdade, a eles, ils, os caçadores que usam escritórios e quartos de hotéis para, em encontros furtivos, dar vazão às suas taras. Às vezes perdem o controle e desandam em violência. É sua forma de escapar à repressão sexual, aos condicionamentos sociais, às frustrações maritais. Nem por isto deixam de serem românticos, sedutores, paternais. Seres comuns.
Muitos deles enfrentam a crise da meia-idade. As garotas de programa lhes devolvem a sexualidade perdida. Como na nostálgica sequência em que um deles canta “Folhas Mortas”, de Jacques Prévert, ao violão para a imigrante polonesa Alicja (Joanna Kulig). Não há como não se emocionar. Ou se sensibilizar com o executivo que de repente cai num convulsivo choro perante a perplexa francesa Lola/Charlotte (Anaïsa Demoutier). É o macho em seu ocaso. Elas são para eles mais do que objeto sexual, são suas mudas confidentes.
Suas histórias brotam dos depoimentos de Lola e de Alicja à jornalista Anne (Juliette Binoche) para a revista feminina francesa Elle. O que resulta daí é um filme de duplo vértice. A cineasta Malgorzata Szumowska e sua corroteirista Tine Byrckel usam as situações vividas por elas para situar a vida conjugal de Anne. Ela passa o dia dividindo-se entre tarefas domésticas e jornalísticas. Sua convivência com o companheiro Patrick (Louis-Do De Lencovesaing) e os filhos Florent e Stéphane é fugaz. E cada detalhe do cotidiano de Alicja e Lola com os clientes confirma sua modorra conjugal.
Matéria muda vida de Anne
Em princípio são as fantasias dos clientes das entrevistadas que a atraem. Depois começam a perturbá-la. Já não controla o que registra. É tão forte que sua carga sexual reprimida leva-a a procurar compensá-la. Tenta satisfazer-se consigo mesma sem sucesso. Nestes entrechos, Szumowska se prende às garotas de programa e como estimulam as fantasias dos clientes sem culpa ou repressão. Chegam a ser maternais. Já Anne não consegue esconder seus traumas. Tudo à sua volta a aborrece. E a matéria passa a conduzir sua vida.
Numa ilustrativa sequência, ela se deixa seduzir pela envolvente Alicja. Música e carícias atestam suas carências. Aos poucos, ela descobre em que se transformara sua vida. As jovens, em seus depoimentos, falam dela, de Patrick e de seu casamento que, há muito, se romperam. Inclusive sua relação com Florent, o filho mais velho. Para salvar sua relação com o companheiro, ela se vale dos métodos usados por Alicja e Lola e é repelida. A atitude dele é a mesma dos clientes delas: a companheira é sempre pura.
Ela, Anne, então se vê num impasse. Já não separa realidade, vida conjugal e fantasias. Os clientes das entrevistadas viram fantasmas. Numa sequência ela os vê à mesa, tomando vinho e ouvindo “Folhas Mortas” com Patrick. O mais violento deles encara-a cheio de lascívia. Eles são o que ela deve expurgar de sua vida conjugal. Não deixa de ser uma crítica às exigências feitas às mulheres de que a elas cabe tudo. Inclusive salvar o casamento.
É nisto que “Elles” se diferencia dos filmes que tratam da prostituição. Em sua maioria têm a visão moralista, burguesa-cristã, de descida aos infernos. São depressivos, eivados de pecado. Szumowska dota sua obra de forte sensualismo, enquadrando corpos femininos e masculinos sem meios tons. Tampouco põe Lola e Alicja como vítimas. Elas apenas fizeram suas escolhas e se sentem bem com elas. Surge daí um filme provocante, erótico, adulto.
Sociedade divide papéis sexuais
A prostituição, como se vê, não é o eixo central do filme. Szumowska usa-o para falar das relações conjugais e familiares. O desfecho bem o comprova. É quando suas intenções ficam claras. É preciso criatividade para sustentar um casamento. Também discute as opções das adolescentes e as armadilhas que o sistema capitalista as submete. Lola é de família classe média, que se esforça para estudá-la. Os empregos que encontra não lhe garantem futuro e pagam mal. “Ganho mais com meus programas (citação não literal)”.
Com Alicja não é diferente. Saiu da Polônia para estudar em Paris. Viu no sexo a forma de resolver seus problemas. “Tive sorte, estou aqui há pouco tempo e já tenho meu apartamento”, diz a Anne. Seu jeito de menina, sua fala desinibida e sem culpa, mostra consciência do que faz. Não é de forma alguma penoso para ela. Na juventude tudo parece mais fácil. A questão é que quanto mais amadurece, menos o telefone toca e os riscos crescem.
A contribuição de “Elles” é este olhar sobre como os homens escapam ao tédio da vida conjugal e como a sociedade burguesa divide as atribuições das mulheres. Existem as que são esposas e as “prostitutas”. A mercadoria destas continua sendo o corpo. Quanto às companheiras não lhes é permitido ser engenhosas na relação sexual sob o risco de serem punidas. Algo precisa ser ajustado, sob pena de ambas serem estigmatizadas pelo que não criaram.
”Elles”.
Drama. 2012.
França/Alemanha.
110 minutos.
Fotografia: Michal Englert.
Roteiro: Tine Byrckel/Malgorzata Szumowska.
Direção: Malgorzata Szumowska.
Elenco: Juliette Binoche, Joanna Kulig, Anaïse Demoutier, Louis-Do De Lencosvesaing.