“Enfim Viúva”: Rindo de si mesma

Comédia da diretora francesa Isabelle Mergault brinca com a família, a classe média, a busca da beleza e a eterna felicidade

                  Há em “Enfim Viúva”, da francesa Isabelle Mergault, uma série de situações costumeiras nas comédias amorosas: da mentira desculpável ou nem tanto às relações amorosas corroídas, do triângulo amoroso às desconfianças dos familiares. A validade do filme, no entanto, está na forma com que Mergault e seu co-roteirista Jean Pierre Hasson se valem delas para provocar o riso. Embora o espectador torça por ela; Anne-Marie (Michéle Laroque) sempre se enrola em suas trapalhadas. A princípio ela lhe parece esperta, depois se mostra de uma ingenuidade que beira o ridículo. Tamanha idiotice só o irrita, mas é daí que nasce a empatia entre ambos.

                  É uma personagem que oscila entre o sonho e as impossibilidades, com a vantagem de que Mergault e Hasson não usam uma jovem para tornar aceitáveis as situações criadas por Anne-Marie. Ela é quarentona, trapalhona, dada a mentiras e fantasias. É como se o amor fizesse a pessoa retornar à adolescência. Numa sequência que bem o ilustra, ela se mete numa sucessão de trapalhadas com o celular, como se ele brotasse do nada. Noutra, paródia dos encontros de Romeu e Julieta no balcão do sobrado, o amante Léo (Jacques Gamblin) se esmera para que ela apareça na sacada de sua mansão.

                O que garante a gargalhada aqui são os espaços onde a cena se dá. Impossível não rir de dois quarentões, Anne-Marie e Léo, tendo que usar experientes juvenis para burlar a atenção do marido dela, Gilbert (Wladimir Yordanoff). Cirurgião plástico, este se irrita com as criancices da mulher, tratando-a como uma imbecil. Ambos não se suportam, nem se toleram. Não só pelos instantes de Ofélia dela à mesa de sofisticado restaurante, com o rico casal de amigos, também pelas músicas que ela ouve no carro. Definitivamente, as diferenças culturais entre eles é que a faz cair nos braços de Léo.

                É a chamada atração por afinidade; Gilbert gosta de exibir sua riqueza, Anne-Marie se esmera para encontrar seu companheiro ideal. Encontra-o no reparador de navios prestes a ter seu grande momento na China, para onde irá com sua equipe. Ao contrário de Gilbert, Léo não é dado a etiquetas, frequenta bares e restaurantes populares, troca impressões com a garçonete, não deixa os amigos na mão. Nele ainda existem resquícios de humanidade e utopia. É tudo o que estimula Anne-Marie a ficar com ele.

                Torre de vidro
                quebradiça
A vida que Léo lhe oferece é o contraponto à torre de vidro que a torna fútil e infeliz. E instiga seu sonho de Cinderela. O que faz para obtê-lo rende momentos de ridículo para ela e risadas para o espectador. Mergault e Hasson amarram estas gags (a construção do riso) com um pé na realidade. Uma tênue realidade a que ela se apega, tornando aceitável seu comportamento de adolescente. Ela é vítima de uma estrutura de classe média que lhe retira a capacidade de ser ela mesma e de externar sua utopia.

               Estas amarras adquirem sentido quando seu filho Christophe (Tom Morton), estudante de medicina, estagiário na clínica do pai se intromete em sua vida. Ao ajudá-la se safar de várias confusões, revela a insustável vida que ela leva. É corrosiva a sequência em que ela em pleno luto se põe a pintar as unhas do pé, para se encontrar com Léo. A futilidade da vida burguesa brota com uma força que o espectador não sabe se rir (e ri) ou se espanta (e se espanta) e termina por achar tudo surrealista.

             O que vale para a sociedade de aparências é a imagem que Anne-Marie deve construir para seduzir o amante. A própria economia da beleza, com seus produtos, ritual, desfiles, lojas, lhe impõe isto. Embora demonstre não se importar com o conforto que Gilbert lhe dá, ela não escapa ao consumismo e as imposições da indústria da beleza. Com isto, Mergault e Hasson se intrometem num dos pilares do capitalismo do belo; ao contrário do que se dizia antigamente, “é preciso ser bela/o por dentro”, agora é necessário ser bela/o por fora para manter a imagem que a/o tornará aceitável pela tribo.    

            Este desnudamento não se restringe a dubiedade do comportamento de Annie-Marie, ele se estende à sua cunhada, cuja peruca não se cansa de cair. E ao modo como todos se vestem para o velório, quando toda a trama se desconstrói, mas o filme ainda rende gostosas risadas. Mergault e Hasson não se furtam a brincar com a senilidade do idoso Gabi, que escapa à dor por confundir nomes e situações. Até a nora Annie-Marie troça de suas trapalhadas. Para ela, a classe média e suas convenções não passam de futilidades. 

             Se “Enfim Viúva” não é um grande filme, pelo menos faz o espectador rir das convenções que satisfazem alguns e levam outros a procurar quem os ajude a concretizar seus sonhos. Mergault não faz uma comédia entre paredes, seus espaços são abertos, flagra o mar, as ruas e a montanha. Mesmo quando cria situações esdrúxulas há sempre leveza e uma tendência à autogozação. (Vide a cena de Annie-Marie de roupas íntimas no barco de Léo). Num instante de mau humor na França, não é pouco. Enfim, é para isto que existe o riso.

Enfim Viúva” (“Enfin Veuve”). Comédia. 2007.93 minutos. Roteiro: Isabelle Mergault. Jean Pierre Hasson. Direção: Isabelle Mergault. Elenco: Michéle laroque, Jacques Gamblin, Wladimir Yordanoff, Tom Morton.

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