Estrangulamento do ensino superior público, interdição do futuro

Talvez ainda não consigamos dimensionar os impactos que o alargamento do espectro do ensino superior público no Brasil e sua democratização causaram na dinâmica das trocas econômicas no país.

Nos últimos 17 anos, o sistema de ensino superior se transformou radicalmente. Mesmo que a radicalidade da mudança devesse ter sido maior, haja vista o cariz e a estrutura extremamente arcaicos, excludentes, aristocratas que ainda resistem na universidade, não se pode negar, diante dos números que dão conta de inventariar os ativos dessa estrutura ao longo dessas quase duas décadas, que a mudança é vultuosa e serviu para deixar essa estrutura conservadora exposta e encurralada.

À época dos debates acerca do Programa Universidade Nova e do Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), o qual mobilizou os atores históricos que constroem ou que se mobilizam em torno do ensino público e da ciência básica no Brasil, Naomar Almeida Filho declarou acerca das medidas governamentais que faticizariam a sua reforma: “uma universidade nova, por dentro da velha”. Declaração polêmica. Naomar logrou, com ela, sintetizar a imagem do que vivíamos no período e dar cor à tensão que dividiu historicamente esses atores, demonstrando que uma guerra complexa tinha início entre estruturas distintas, concepções de educação, ideias e práticas que há anos, por repetição e conservação, formaram o corpo social e determinaram a função da universidade – maior agente produtor de ciência e indutor de inovação tecnológica no Brasil. Cônscio dos limites dos programas, ciente da força inexorável dos ressentimentos e apostando na dialética da história e da sua força de coerção, o então reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) era um entusiasta realista.

Quem estaria disposto a travar essa guerra? Quais foram os protagonistas de ponta que movimentaram a arena dessa disputa? Foram todos aqueles que, ainda que bem-intencionados, se viam ameaçados em suas vantagens competitivas nessa dinâmica da estrutura econômica arcaica e decadente em processamento. Tornou-se uma guerra no sentido dos que se interessavam em proteger aquelas práticas, ideias e doxas de qualidade e excelência contra a conspurcação do que lhe garantia ser como era – o vestibular, a seleção, a sua configuração como “clube de eleitos” de, no máximo, bem iniciados. Tornou-se uma guerra contra a terrífica deficiência propalada do ensino básico público no Brasil; contra a transformação da universidade em lugar de generalidades e pela preservação dos currículos e das profissões e ocupações “tradicionais”, quase sempre liberais; contra a injeção de força de trabalho qualificada no mercado de trabalho, o que, argumentava-se em todos os espaços, depreciaria os salários a longo prazo; contra a possível intolerância de um contingente de pessoas que não conheciam a universidade em relação às suas práticas organizativas que apareciam “sagradas”, democráticas, inclusivas, diversas, não engessadas, “quase” paternalistas; contra o tomado certo decréscimo dos seus índices de produtividade, espelhados nos coeficientes de rendimento médios; uma guerra contra o trabalho maior que os professores seriam obrigados a empregar, ainda que sem previsão legal, para dar conta de um alunado carente, incapaz, inabilitado, ameaçador; uma guerra contra a precarização da infraestrutura física das universidades – ainda que houvesse previsão de recuperação de uma infraestrutura desgastada há anos – e, pasmem, uma guerra contra a própria reforma dessa estrutura, o que, em muitas defesas, surgia como serviço para descaracterizar o layout simbólico decadente de algumas instituições. De tudo, enfim, nós vimos e ouvimos nessa guerra desmedida.

Seu resultado: de 2002 até aqui, saltamos de 148 campi para 408 (175%); de cerca de 500 mil matrículas para 1,1 milhão (110%); de uma universidade cujo corpo discente estava inserido, basicamente, no estrato médio e alto do Brasil e chega em 2018 com quase 70% de seu alunado na faixa de renda média do brasileiro (percebendo cerca de R$ 1.500 per capta); de uma universidade essencialmente branca e eugenista, temos uma universidade que, pela adoção do sistema de ações afirmativas e reparações históricas por reserva de vargas para alunos negros e oriundos do sistema de ensino básica público, chega em 2019 com 51% de seu corpo discente preto e pardo.

Poderíamos continuar aqui com a demonstração das mudanças profundas para defendê-las radicais. Para isso, André Singer, em seus célebres “O lulismo” (2012) e “As contradições do lulismo” (2016) adianta nosso trabalho, enfocando as contradições entre pontos de radicalismo político e econômico e ponto de manutenção ou mesmo de inflexão conservadora que, no todo, podem ser traduzidos no que denomina um reformismo fraco e contínuo. Basta, para tanto, demonstrar que, mesmo o Governo da presidenta Dilma Rousseff, pressionada pela sanha do mercado financeiro, começa a redimensionar para menos os investimentos na estrutura da educação do ensino público superior, da ciência e do desenvolvimento tecnológico, o que é aprofundado vertiginosamente no governo de Michel Temer e se conclui como área privilegiada de corte do governo de Bolsonaro. Todos pressionados pela inversão da leitura dos investimentos com educação superior; todos pressionados pela descarada cobrança de efetividade, pela distância falaciosa sobre a percepção comparativa entre investimento em ensino superior e em ensino básico no Brasil. Esses últimos defendendo abertamente conceitos como eficiência, otimização de gestão e sinalizando a distância das práticas simbólicas e ideológicas que fazem a universidade das práticas materiais e simbólicas da maioria da população brasileira.

Em tempos de Emenda 95 e corte na monta de 50% dos investimentos em ensino público superior – que não chegaram a recuperar as perdas orçamentárias que sofrem desde 2014 –, quando todas as universidades, agências de fomento à pesquisa e setores direta e indiretamente ligados à ciência, tecnologia e inovação declaram estado de calamidade, chegamos isso: a um resultado que é radical, mas incluso.

Se é verdade que a guerra entre a nova e a velha universidades expôs a estrutura da velha como injusta, decadente, elitista, improdutiva e violenta, a ponto de os atores bem-intencionados que a defendiam renhidamente terem passado para o outro lado preocupados, ainda, em apagar os vestígios do passado, a decrépita ainda vive e, agonizante, quer fazer sua morte servir de obelisco ao futuro. Ela está na fala de Vélez e Weintraub, ao proporem seleções para maximizar os CR’s, atacarem o tripé democrático das instituições, ao abrirem a universidade para a gestão “eficiente” e os recursos do mercado, exploração de grupos privados, conduzirem ataques à sua autonomia e democracia, instituírem cobrança de mensalidade (o que causaria uma cisão nefasta na dinâmica da composição social da universidade).

A contradição é justamente essa: os grupos privilegiados historicamente não estavam dispostos a abrir mão da universidade, da reserva de mercado de trabalho, da injeção de financiamento em ciência a grupos quase seculares e se valeram da lendária excelência da universidade pública no Brasil, tomando como fator primordial dessa “excelência” sua redução estrutural, no que foram apoiados pelos bem-intencionados de primeira hora, seja por sua extração de classe, seja por sua obnubilação ideológica, os quais se encarregaram de sustentar que o faziam por nós, pelo Brasil, contra as injustiças sociais, em nome, em resumo, dos que permaneciam fora da universidade e fora continuariam. Nós, do outro lado da trincheira ganhamos e perdemos, e ganhamos e perdemos. Explico: diante de um corpo docente que assistia à recomposição do orçamento continuamente, com uma demanda reprimida acumulada por dez anos, conseguimos aprovar, sempre por margem apertada e com tensionamentos, as reformas expansionistas e democráticas, mais ou menos tímidas, em todas as instituições a que foi submetida; por obra e graça dos bem-intencionados, que, de fato, refletiam a opinião da maior parte do corpo social da universidade, fomos vencidos no âmbito do movimento estudantil e das representações de categoria, na certeza de que falávamos para um interlocutor interno de mudanças que só beneficiariam imediatamente os interditados, as quais, dez anos depois, são quase o princípio inatacável da simbólica democratização do ensino superior público no Brasil; logramos, em muitos casos, construir novas práticas sobre as arcaicas, demonstrá-las mitos, e derrubar a marretadas algumas construções tão antigas quanto o império; não conseguimos, ainda assim, aprofundar a disputa no sentido da desfeudalização integral do poder nas instituições de ensino superior e do alargamento da pertinência social da universidade, sobretudo para aqueles que pouco a conhecem e com ela não puderam se relacionar.

A mudança profunda na dinâmica das trocas econômicas ocorreu, seja no âmbito das economias e trocas afetivas, simbólicas, estruturais e estruturantes, mas foi insuficiente porque se restringiu àqueles que eram e foram abarcados pelo raio limitado, ainda que duplicado, de alcance das instituições que fazem ensino superior, ciência e pesquisas no Brasil. Agora, a sanha do mercado financeiro sentada na cadeira presidencial, que há muito vem formando um conglomerado financeiro em torno dos ganhos vultuosos em cima da esperança do diploma universitário – parte do sonho de emancipação da conhecida promessa de efetivação da cidadania regulada – se vale da imagem dantesca da balbúrdia quase mística como forma de ganhar os ativos dessa universidade que pretende tornar espólio, disputando a opinião da maior parte da população. Querem vender a universidade desgastando sua imagem, derretendo sua credibilidade, desmoralizando-a. Nós só temos, em nossa defesa, o resultado do que de melhor fizemos nos últimos anos de democratização, ampliação e expansão, justamente, para disputar não mais intramuros, mas na esfera da opinião pública, no seio da sociedade civil, a sua pertinência social; temos apenas – e, felizmente, a despeito de muito, não é pouca coisa –, a mudança na vida da doméstica e de suas filhas e filhos, o reconhecimento de novos laboratórios que estudam negritude, ambiente, mercado de trabalho, mudanças climáticas, o aumento das publicações em nível de iniciação científica e pós-graduação, a melhoria nas condições de vida que um diploma superior de reconhecimento inconste causa na economia doméstica, entre outros impactos, para ganhar aderência da opinião do povo e mantermos a universidade pública em funcionamento, como orgulho e necessidade nacional e social. Para que o jovem de classe média abastado e idealista conclua o seu bacharelado em direito, ele só poderá contar com a garantização de que a família de seu pedreiro será  diplomada com ele, na mesma turma. E isso implica um projeto que tenha em seu bojo, agora sem possibilidade de recuos, a universalização do acesso ao ensino superior como ponto inegociável.

A história é astuta, mas, em suas voltas e contradições, ela dá um jeito de negritar o sentido de justiça que seu avanço positivo pressupõe, para aqueles que, outrora, não o tenham entendido muito bem. Entendido bem, neste caso, que a universidade precisa ser cara, mas somente porque é estratégica para a soberania nacional, para a melhoria das condições de vida da população em todos os sentidos, que seus ativos são bem público e que, por isso, interditar acesso ao povo que a custeia é crime. A história astuta e implacável.

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