Farsa no Chile (1973); Tragédia da Argentina (2008)

Assim que consideram firmada a sua posição os republicanos burgueses desvencilham-se do companheiro inoportuno e apoiam-se sobre os ombros do partido da ordem. O partido da ordem ergue os ombros fazendo cair aos trambolhões os republicanos burgueses e ati

Gritando “Liberdade e Caçarolas”, enquanto os patrões fingindo-se de vítimas pintavam de bondade suas caras feias e se disfarçando de proletários decretavam a greve de senhores recebendo de Nixon os dinheiros: trinta moedas para os traidores (Pablo Neruda, no poema Vitória).


 


 


Yo pregunto a los presentes Si no se han puesto a pensar Que esta tierra es de nosotros Y no del que tenga más (Victor Jara, em A Desalambrar)


 


 


No extraordinário, sempre citado e recorrente O 18 Brumário de Louis Bonapoarte, escrito por Karl Marx entre 1851 e 1852, o pensador revolucionário colocava que Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), representante da filosofia clássica alemã, havia observado em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes, mas esquecera de acrescentar: “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
Marx ainda complementava: “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar e nessa linguagem emprestada”.


 


 


Ainda na primeira parte, quando exprime a grande compreensão sobre a história, Marx, por fim, complementa: “a revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda veneração supersticiosa do passado. As revoluções anteriores tiveram que lançar mão de recordações da história antiga para se iludirem quanto ao próprio conteúdo. A fim de alcançar seu próprio conteúdo, a revolução do século 19 deve deixar que os mortos enterrem seus mortos”. [1]
Os episódios recentes da Argentina, necessariamente nos levam ao texto de Marx e ao Chile de 1973.


 


Grandes proprietários de terras e caminhoneiros argentinos, estes em quatro meses de greve, vem tentando sangrar o governo de Cristina Kirchner, a fim de manter uma estrutura secular de dominação latifundiária em aliança com o imperialismo e setores dominantes da indústria. A vitória mais recente se deu quando o Senado argentino, na madrugada de 16 de julho, após 18 horas de debate, derrotou a proposta vitoriosa na Câmara dos Deputados, negando a presidenta o projeto de lei que aumentaria o imposto às exportações de grãos, as chamadas retenções. [2] A derrota do governo veio pelo voto de minerva do próprio vice-presidente da República, também presidente do Senado, Julio Cobos, que deu a vitória aos interesses dos proprietários rurais.


 


Logo os dirigentes das quatro câmaras patronais agropecuárias, que impulsionaram o locaute de 101 dias contra as retenções, festejaram a decisão no rico bairro de Palermo, na zona norte da capital argentina.


 


Entre o Chile de 1973 e a Argentina Atual Não Há Meras Coincidências
No Chile de 1973, quando o governo eleito e socialista de Salvador Allende procurava aprofundar as mudanças estruturais daquele país, foram decisivas as manobras e as greves dos caminhoneiros em aliança com os latifundiários, marcando o boicote e a oferta de produtos alimentícios, criando um “mercado negro” de mercadorias. Naquele contexto histórico, aquelas pressões foram fundamentais para a conquista do apoio político da pequena burguesia ao golpe civil-militar, que teve a frente o famigerado Augusto Pinochet para a derrubada do governo da Unidade Popular.


 


O programa eleitoral de Allende havia defendido que a única alternativa verdadeiramente popular, sendo a tarefa fundamental do Governo do Povo, era “terminar com o domínio dos imperialistas, dos monopólios, da oligarquia latifundiária e iniciar a construção do socialismo no Chile”.


 


Os eixos do programa da Unidade Popular centravam-se na reforma agrária e na expropriação das grandes empresas privadas, através de nacionalizações coordenadas pelo Estado. A reação conservadora não tardou e a conspiração ativa iniciou. O imperialismo norte-americano assumiu seu papel golpista com recursos do governo e das transnacionais, financiando “todo tipo de ação social desestabilizadora, com a finalidade de criar o ambiente propício a uma intervenção de força. Greve dos caminhoneiros (que para um país com a geografia chilena é catastrófica), e o conseqüente desabastecimento; atentados forjados para atribuir a responsabilidade à esquerda; os famigerados “panelaços”; as matérias pagas, e também gratuitas, na grande imprensa; boicote no comércio internacional e no crédito, entre outras sabotagens e retaliações. [3]


 


O protesto dos proprietários agrários da Argentina, iniciado em março de 2008, para combater o aumento das retenções, que foi o seu detonador, ganhou o apoio de empreiteiros e trabalhadores rurais, além de vários setores de classe média. O projeto do atual governo argentino apontava para uma redistribuição de renda capitalista, via tática reformista para obter e manter um dólar competitivo, tendo parte da subida dos preços dos produtos derivados da desvalorização do peso. A política agrícola do governo de Cristina Kirchner não significava mais impostos sobre a propriedade dos grandes latifundiários ou sobre o lucro/rendimento potencial da terra, o que representaria uma política mais radical de taxação dos ruralistas. Mesmo assim, a reação conservadora conseguiu mobilizar grande apoio de rua, coordenada pela grande mídia, sobretudo através de panelaços.


 


Diferentemente de 2001, quando o cacerolazo uniu conjunturalmente a classe média alta, que teve seus recursos bancários retidos no curralito, com os piqueteiros, em 2008, aqueles setores sociais se tornaram ponta-de-lança dos latifundiários, via panelaços nas ruas em distintos pontos da Argentina, como Tucumán, Córdoba, Santa Fe, Entre Rios, Rosário, La Plata, Mar del Plata, entre outros, como também em bairros residenciais de Buenos Aires (Palermo, Recoleta, Belgrano) canalizados para manifestações na Praça de Maio.


 


Coincidentemente, no Chile entre 1971 e 1973, os panelaços estavam entre as formas principais de manifestações conservadoras contra o governo da Unidade Popular. Naquele processo, o boicote começou a ter resultados esperados e a crise começou a generalizar por todo o país, aumentando as reações contra o governo. No início de 1971, se organizaram marchas nas principais ruas das cidades, produzindo massivas manifestações em defesa destes grupos.


 


Os cacerolazos mais importantes foram organizados pelo movimento Poder Femenino, em dezembro de 1971, tendo a adesão da ala direitista do partido Democrata Cristão, do Partido Nacional e do movimento nacionalista Patria y Libertad. Na contramão dos mesmos, ocorreram atos a favor de Salvador Allende.


 


Já na Argentina atual, contra os protestos conservadores, grupos políticos adeptos do governo, os auto-denominados piqueteros kirchneristas (encabeçados por Luis D'Elía) e militantes do grupo Jóvenes K, dessa vez se apartaram da pequena burguesia, mostraram seu apoio às medidas de retenções e opondo-se aos panelaços, liderados no país pelo ruralista Alfredo De Angeli.


 


Neste processo de ampliação do conflito social, a exemplo da categoria no Chile de 1973, também a maioria dos caminhoneiros argentinos se somaram com os produtores agropecuários, promovendo greves e interrupções de estradas por vários pontos do país, fortalecendo a tática de desabastecimento de alimentos para a população urbana.
Nesta tática, as entidades agropecuárias, que reúnem cerca de 290 mil produtores, decidem pela não comercialização de grãos destinados à exportação, enquanto que nas estradas os caminhões que transportam essa mercadoria para outros países ficam totalmente parados. Formam-se os bloqueios parciais de rotas, ampliados com tratoraços, quando os produtores bloqueiam as vias com suas máquinas. Com eles, se juntam os novos ricos do mundo agrário (pequenos e médios rentistas e agricultores), de fato, a massa de manobras do agronegócio argentino, instigados pelos grandes proprietários, um setor agrário ávido por parte dos superlucros do negócio exportador.


 


No Chile de 1973, a greve nacional da Associação dos Donos de Caminhões, financiada pela CIA, teve como objetivo exatamente o dos controladores: desorganizar a produção. Os caminhoneiros organizaram os boicotes nas estradas, bloqueando o tráfego com cinqüenta mil caminhões, procurando fazer com que a economia entrasse em colapso. Na ocasião, os caminhoneiros chilenos, que foram pagos, com meses de adiantamento para ficarem em suas casas, tinham como objetivo derrubar os ministros da Defesa, Carlos Prats e Orlando Leteleier, buscando atingir o Presidente da República Salvador Allende. [4]


 


Não tem sido outra a estratégia na Argentina de 2008, buscando fortalecer a crise institucional e enfraquecer o governo de Cristina Kirchner, jogando a classe média e os trabalhadores contra o governo.


 


Em O 18 Brumário, a partir do exemplo francês do século 19, Marx já mostrara que a burguesia reclamava a República como sua propriedade em nome do Capital, encontrando formas de governo na qual podia assentar seu domínio de classe. Assim, a questão da propriedade tem sentido essencial para qualquer transformação revolucionária da sociedade.


 


Na América Latina, não esqueçamos, diferentemente do processo de desenvolvimento capitalista da Europa ocidental, a burguesia nasceu essencialmente da acumulação capitalista do campo, fortalecendo uma burguesia agrária sem contradições com a burguesia industrial, especialmente em aliança com os monopólios imperialistas. Assim, consolidou-se uma fração reacionária da burguesia agrária contra qualquer reforma estrutural no campo, mantenedora do latifúndio, sem contradição de classe com as transnacionais e o capital financeiro, marcando a essencialidade da estrutura de propriedade da terra em nosso Continente. [5]


 


Quando iniciou a crise com os ruralistas na Argentina, Cristina Kirchner disse ser “contra a luta de classes”, expressando um princípio doutrinário do peronismo tradicional. A luta de classes argentina bateu na porta do governo, derrotou-o com “fogo amigo” e tragicamente fortaleceu momentaneamente os terratenientes e seus aliados oligopolistas.


 


Parafraseando Marx, podemos concluir que a revolução social do século 21, tem que se despojar de toda veneração do passado, especialmente marcada pela relação entre o latifúndio, a burguesia e o imperialismo. Sem enterrar estes mortos do retrocesso social, não ocorrerá o salto de superação que a América Latina necessita para a construção do socialismo neste século. Os novos governos latino-americanos, que têm no horizonte o socialismo, têm que criar condições políticas para formar fundos econômicos que garantam suprimentos baratos, o controle de zonas produtivas agrícolas para a maioria da população e a distribuição de produtos sob o domínio dos trabalhadores e pequenos proprietários . Sem isso, a necessária derrota histórica e política do latifúndio, dos grandes proprietários rurais, das grandes empresas de transsportes e do agronegócio ficará sempre distante.


 


Eis um dos eixos da luta de classes hoje, tanto para obreros como para campesinos, fundamental para a superação tática da ofensiva neoliberal e do predomínio do capital financeiro na América Latina que têm procurado manter nossas repúblicas em propriedades burguesas e nossos governos em espaços políticos de domínios do Capital, sobretudo baseado no agronegócio e na financeirização da economia.


 


 


Notas


 


[1] Ver O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. Vol 1. Moscou: Progresso, 1982, p. 417-9.


 


[2] O projeto governamental chegou ao Senado após ser aprovado pela Câmara dos Deputados por 129 votos a favor e 122 contra, em uma sessão que foi encerrada no dia 5 de julho e que durou mais de 17 horas. O conflito entre o campo e o governo começou no dia 11 de março, quando o Ministério da Economia ditou uma resolução na qual impôs impostos móveis às exportações de grãos. A rejeição ao novo esquema tributário gerou quatro greves que impediram a comercialização de grãos, além de bloqueios de estradas e desabastecimento de alimentos para a indústria, que causaram milionárias perdas ao país. Cf. estas informações na matéria Voto de Minerva pró-ruralistas impõe derrota aos Kirchner. Disponível em http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=40503. Acesso em 17 jul. 2008.


 


[3] Ver as considerações acima no texto de Fábio Luís. Allende: 30 anos. Disponível em http://www.centenarioallende.org/index.php?view=article&catid=1&id=1%3Aallende-30
anos&tmpl=component&print=1&page=&option=com_content. Acesso em 17 jul. 2008.


 


 


[4] As imagens da construção do Golpe de 1973 no Chile, durante o governo da Unidade Popular, pode ser visto no magistral documentário A batalha do Chile, dirigido por Patrício Guzmán, quando, inclusive, é mostrada a greve dos caminhoneiros chilenos.


 


[5] A seguinte passagem mostra os reflexos dessa política para a Argentina atual: “os agronegócios atuais são, entre outras coisas, “negócios inflacionários”, impulsionados por (e impulsionando) corridas especulativas internacionais (e intranacionais), jogadas ardilosas e operações de curto prazo em busca de superlucros, acumulações velozes de liqüidez destinada a ser reinvestida nesse setor ou em outros. A depredação de tudo o que cruza em seu caminho (recursos naturais, estruturas sociais, etc.) é um componente essencial de seu comportamento. No caso específico argentino, é possível afirmar que o clima cultural que prevalecia no início desta década (bem adubado pelo período menemista) estava perfeitamente preparado para essa avalanche capitalista global. O governo dos Kirchner, agora vítima do fenômeno, alentou-o desde sua chegada, porque considerou que era um fator decisivo da “prosperidade econômica” que garantia a estabilidade institucional. Os recordes de exportações agrícolas (ou seja, a ascensão triunfal dos agronegócios) eram apresentados pelo oficialismo como exemplo de sucesso empresarial da nova Argentina, onde a acumulação de reservas dolarizadas, as altas taxas de crescimento do PIB e o enriquecimento dos poderosos costumavam estar associados à integração social, recuperação de salários e empregos e consolidação da convivência republicana. Pelo visto, o “progressismo” tinha, finalmente, encontrado a fórmula da quadratura do círculo: subdesenvolvimento capitalista próspero com inclusão dos “de baixo” e democracia representativa. Mas a festa durou menos de meia década, os agronegócios foram acumulando poder econômico, midiático e político e no primeiro semestre de 2008 já estavam em condições de expor seu poderio e avançar para uma superconcentração de renda. Ao fazer isso deterioraram gravemente não só a governabilidade progressista, mas a governabilidade em geral: a inflação descontrolada e a irrupção de uma massa social reacionária muito agressiva e estendida, com claros surtos protofascistas, pôs em evidência a fraqueza do regime político e sua legitimidade insuficiente. De maneira aparentemente “inesperada” começou a enésima crise de governabilidade da história argentina, e ela não foi originada pelo desmoronamento econômico, mas pela prosperidade (agroexportadora), seu contexto internacional está sobredeterminado pela crise inflacionária global e a burguesia ganhadora que desatou a crise dificilmente poderá transformar sua dominação econômica em um sistema integral e durável de controle político da sociedade: sua ascensão é desestabilizadora. De qualquer maneira, não parece estar muito preocupada pelo futuro em geral e, muito menos, com o futuro da “democracia” virtual argentina; sua obsessão é acumular grandes lucros o mais rapidamente possível, seu mundo é o do curto prazo e corresponde com a voracidade niilista dos centros financeiros do planeta. Enquanto isso, o governo e a totalidade dos grandes meios de comunicação insistem em que a Argentina está diante de “uma grande oportunidade” de enriquecer, graças ao aumento vertiginoso dos preços dos alimentos. O fato de que isso faça mergulhar na fome centenas de milhões de seres humanos não parece motivar neles nenhuma reação ética. Sua pequena “racionalidade” amoral impede que percebam, a partir de uma visão racional mais ampla, a catástrofe para a qual estão se encaminhando enquanto contabilizam seus lucros extraordinários, ao mergulharem no mar agitado da área mais instável da economia mundial, com seus preços ziguezagueantes e suas disparadas financeiras. Cf. Argentina: Inflação, agronegócio e crise de governabilidade. Disponível em http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=40438. Acesso em 17 jul. 2008.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor