“Heli” Áridas vidas
Em filme sobre inocência e paixão, diretor mexicano Amat Escalante discute o poder do crime organizado e a inoperância do Estado em seu país
Publicado 02/10/2013 10:11
Desde as duras imagens de “Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia” (1974) não se via a aridez da paisagem refletir os estados de abandono, miséria e ausência do Estado. Se o estadunidense Sam Peckinpah (1925/1984) tratava de recompensa e violência em sua epopéia, o cineasta mexicano Amat Escalante prefere estruturar uma história de amor em que dois jovens são vítimas do poder paralelo. Mas ao contrário de Peckinpah, em seu filme inexiste o anti-herói que justifica sua ambição. Os proletários de “Heli” (1) são vitimados duplamente pelo sistema de segurança e o crime organizado.
Os códigos e mensagens cifrados do tráfico de drogas se fazem sentir desde as primeiras imagens. O corpo do jovem pendurado na passarela sobre o asfalto da avenida sob sol escaldante. A seguir vem o longuíssimo flashback, cujos fios são deslindados para o espectador apreender a história de amor de Estela (Andrea Vergara), de 12 anos, e do cadete Alberto Contreras, e a tragédia que essa paixão desencadeia. E a inocência se torna ingenuidade.
Amat, roteirista e diretor autodidata (“Sangre”, 2005, “Bastardos”, 2008), destitui seus entrechos do espetacular, prefere a cadência. À relação Estela/Alberto contrapõe a do casal Heli Silva/Sabrina. Este, ao contrário, tem um bebê pra criar. Heli (Armando Espitia) trabalha com o pai numa montadora de automóveis. Levam, enfim, uma vida tranquila num vilarejo mexicano. Ali predomina a paisagem tão árida quanto a vida dos míseros proletários.
Policial tenta seduzir Heli
Se há identidade entre seu filme e o de Peckinpah, centrada na paisagem rústica, no calor, ela se estende à ausência do Estado. Peckinpah usa o latifundiário El Jefe (Emílio Fernandez) para mostrar seu poder, em “Heli”, Escalante o substitui pelo tráfico de drogas. O Estado quando aparece é numa lentidão assombrosa, destituído de vontade e credibilidade. Numa sequência com Heli e a policial que “investiga” seu caso, ela fala apenas superficialmente sobre as investigações, e abruptamente despe os seios, tentando seduzi-lo. Ela é policial, mas está ali para outra coisa.
São nestes tênues fios dramatúrgicos que Escalante denuncia a conivência do aparelho de segurança com o crime organizado. Noutra sequência, os policiais estão com Heli, procurando saber como se deu o que eles investigam. Mostram-se interessados e só. O que de fato ocorre paralelo ao investigado é a destruição da família Silva. No início do filme, Escalante mostra-a estruturada, seguindo sua existência. A garota Estela vê televisão, vai à escola, enquanto sua cunhada Sabrina (Linda González) cuida da criança, Heli e o pai vão trabalhar na montadora de automóvel. O fio que desmonta este cotidiano é a paixão de Estela por Alberto, em seus passeios pela montanha.
Os jovens enamorados traçam planos, sonham – ela, ingênua, nada sabe dos planos do amado. São eles que irão mudar a vida de ambos. Escalante revela-os quando eles caem em desgraça: o tráfico está à sua procura. Os traficantes jogam com a “credibilidade” dos policiais, ao usar seu uniforme, ao entrar na casa dos Silva, ao ameaçá-los com metralhadoras. Esta dualidade usada por Escalante diz muito sobre a confusão reinante no México, mas também no Brasil, onde as imagens de policiais, traficantes e milícias se confundem.
Estado burguês está podre
Desta forma, a ficção torna-se documental ao reconfigurar a inquietante realidade, diante da inoperância do Estado burguês, infiltrado de alto a baixo de sua superestrutura (Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo). Segundo relatório do governo mexicano, de dezembro de 2006 a 11/09/2011, o crime organizado executou 47,5 mil pessoas no país (2). Heli, diante à inoperância da polícia, decide não só localizar a irmã Estela, como vingar-se dos traficantes que o torturaram. Escalante vale-se de lento andamento para atestar a validade de sua ação. Não se trata de vingança, sim de evitar o pior para a irmã e sua própria família.
Os personagens de Escalante são proletários obrigados a conviver com a violência, os confrontos dos traficantes entre si e com o aparelho de segurança, sem poder se defender. Transformam-se, como os moradores de aglomerados de morros e mangues brasileiros, em vítimas. Heli e sua família ficam em meio ao que ignoram devido à relação de Estela com Alberto – ela agindo por paixão, ele por valer-se do que pertence aos traficantes. E todos acabam pagando.
Escalante trata de tema atual, sem os clichês dos policiais estadunidenses, com direção segura, tendo como personagens cidadãos comuns. Às vezes têm-se a impressão de que estamos no Brasil, dada a semelhança da paisagem, das ruas, das passarelas e dos conflitos entre traficantes, milícias e policiais brasileiros. A família Silva levava uma vida calma, com as atribuições comuns a qualquer outra e a interferência do crime organizado muda tudo. Inexiste o acaso, é o descaso com a vida dos marginalizados que mata.
“Heli”. (“Heli”). Drama. México/França/Alemanha/Holanda. 2013. 105 minutos. Fotografia: Lorenzo Hagerman. Roteiro/direção: Armat Escalante. Elenco: Armando Espitia, Andrea Vergara, Linda González.
(1) Exibido na Mostra Indie13 de BH e SP 2013;
(2) “Monumento na Cidade do México Relembra Vítimas da Violência”, Site Zero Hora, 17/09/2013.