Kucinski tem razão

Os dois últimos artigos de Bernardo Kucinski sobre a greve de fome de Dom Luis Cappio devem ter chocado muita gente, como afirma o próprio autor, que disse ainda ter mexido num vespeiro e levado o maior cacete. Mas esse foi um daqueles “choques” que serve

A ladainha que prega uma espécie de flagelo terreno, contrária a qualquer tipo de desenvolvimento e elevação do nível material da vida do povo, ecoa e ganha fiéis adeptos de uma vida (para si ou para outrem) eternamente penitente. Confunde-se a luta ao lado dos pobres com a apologia da pobreza. E assim, a vida continua a mesma, sem nenhuma mudança mais radical. É possível ouvir a passagem da Bíblia sentenciando: “Bem-aventurado os mansos de coração, pois deles serão o Reino dos céus.”



De repente, os que historicamente defendem a democratização das águas do Velho Chico foram excomungados e amaldiçoados a toda sorte de infortúnio por, entre outras coisas, mexerem no curso natural das coisas. Kucinski mesmo parece ter sido injustamente satanizado. Aproveitando a maré, algumas organizações ambientalistas vieram à tona e ganharam espaço na mídia para atacar o famigerado “progresso”.



São os mesmos inimigos do “progresso” que, quando excursionam a algum recôndito do Brasil e se deparam com famílias vivendo sem energia elétrica, ficam encantados com os vagalumes pirimpilantes iluminando o céu sertanejo e torcem para que a “civilização” fique sempre longe dali. É como se encontrassem um refúgio para a vida estafante das grandes cidades. Luz a lamparina, descascar o arroz no pilão, comida preservada na banha ou no sal, tudo isso e muito mais, não raras vezes é romantizado e concebido como a sincronia perfeita entre homem e natureza. Contra o capitalismo no campo defendem práticas feudais. Até mesmo em louváveis atividades como o Estágio Interdisciplinar de Vivência, levado a cabo pela Federação de Estudantes de Agronomia do Brasil, é possível presenciar um tipo de culto ao inhame arrancado no enxadão e de pés no chão, contra as batatinhas “inglesas” (na verdade peruanas) comercializadas pelo Império.



Aqui cabe parêntesis para valorizar a luta de milhares de militantes combativos e revolucionários, de organizações progressistas do campo, ambientais e da Igreja, que dispõem da própria vida para enfrentar o latifúndio assassino, o coronelismo tirano, a depredação ambiental insana e tantas outras injustiças da qual somos todos irmãos de lutas, em busca de uma transformação radical, embora muitas vezes confundamos o inimigo central.



No entanto, o ataque ao Projeto de Revitalização e Integração das Bacias do São Francisco às vezes padece desse “romantismo” e é feito por distintas frentes, com variados discursos e interesses. O próprio Dom Luis, ao abandonar sua greve de fome já pela segunda vez, investiu contra o bolsa-família chamando-o de bolsa-esmola (o que cabe bem a muitas iniciativas da própria Igreja) exigindo ações sociais sustentáveis. Mas, contraditoriamente, se opõe justamente àquilo que pode gerar milhares de empregos estáveis a toda uma região. A exploração racional das águas do São Francisco para as necessidades básicas do povo e desenvolvimento econômico da região oferecerá uma oportunidade real para que milhões de brasileiros deixem de depender desse beneficio.



Um país que aspira retirar milhões de cidadãos da miséria, que hoje estão abaixo da linha de pobreza, deve adotar uma política de Estado que estimule o crescimento de sua economia, com geração de emprego e distribuição da riqueza e renda. A China é um bom exemplo disso e apresenta alguns números impressionantes. Também a Venezuela demonstra visão estratégica ao investir no projeto de Integração de Infra-estrutura Regional da América do Sul (IIRSA) ao lado de Brasil, Argentina, Uruguai e demais países do Mercosul.



Precisamos combater as desigualdades regionais em nosso país e conferir um protagonismo econômico mais elevado ao nordeste. É notório e comprovado que um dos fatores que atrasa o desenvolvimento no semi-árido brasileiro é a má distribuição das fontes de água. Como lembra João Suassuna, Pesquisador da FUNDAJ, “o rio São Francisco sozinho contém cerca de 70% de toda disponibilidade hídrica regional, se consideradas e adicionadas as vazões firmes de todas as barragens construídas e planejadas nos rios intermitentes. Não será viável um desenvolvimento regional equilibrado, beneficiando a população residente como um todo, sem interligar o rio São Francisco com alguns reservatórios estrategicamente situados nos rios intermitentes, em cujas áreas de influência habitam a maioria da população da região semi-árida”. Ainda há de se acrescentar que soluções outras, como a construção de cisternas, são ações complementares (a água subterrânea só está disponível em quantidade e qualidade apropriadas em cerca de 1/3 do território), e devem ser encaradas como integrantes de um projeto maior que leve em conta também outras medidas, tais como o reflorestamento das matas ciliares, a preservação de mananciais, descontaminação de afluentes, manutenção de caminhões pipas e a própria transposição em si.



A oposição à transposição é conservadora por não apresentar outra proposta viável de desenvolvimento sustentável capaz de modificar o cenário de atraso que acomete milhões de brasileiros há séculos no nordeste. Em que pese ter ares de progressista na medida em que ataca o latifúndio, o grande capital e a oligarquia, o discurso anti-transposição é retrógrado por se opor a mudanças mais profundas e privilegiar o status-quo quando propõe apenas propostas paliativas capazes de no máximo amenizar as privações básicas do povo, sem o compromisso de erradicá-las. Se não é, pelo menos fica parecendo que uma parcela da Igreja e outros movimentos sociais temem perder seus rebanhos de pobres.



Outro argumento utilizado contra a transposição é que a obra beneficiaria as empreiteiras e as elites. Rezando a mesma cartilha do bispo de Barra e seus fiéis seguidores e ouvindo ao pé da letra sua pregação, precisaríamos nos opor até mesmo a construção de hospitais públicos, pois todos são erguidos por empreiteiras e também atendem a interesses da burguesia que dispõe de planos de saúde privados. Da mesma forma escolas, universidades, rodovias, conjuntos habitacionais, etc., podem representar o diabo por promoverem a especulação imobiliária nos entornos, incentivar o êxodo rural ou o inchaço das cidades, segregar famílias… No fundo é também a indisposição de disputar a condução dos projetos, preferindo de antemão a posição mais cômoda de se opor a tudo que pode significar uma mudança mais a fundo.



À primeira vista pode parecer absurdo a comparação, mas a base do raciocínio é justamente essa. Nada pode ser feito. O que Deus criou o homem não mexe. Parece que nosso povo está suprido de todas as suas necessidades. A represa no rio Madeira, a produção de biodiesel, o aumento das exportações, a extração de petróleo na Amazônia, o cultivo de algumas culturas com alta cotação no mercado internacional, rodovias e gasodutos interligando países da América Latina e vários outros empreendimentos são denunciados como obras neoliberais, depredadoras e faraônicas.



Num país como o nosso, de dimensões continentais, população e riquezas naturais ímpares, e ainda mais como uma obra do gigantismo como essa que pretende integrar e recuperar as bacias do São Francisco, sonhada há séculos por várias gerações, logicamente deve ser concebida como um empreendimento “faraônico”, colossal. Não é uma ação qualquer.



O debate sobre a transposição e diversos outros temas continua. Ninguém deve ter o monopólio da verdade. A discussão deve avançar (mesmo agora com a decisão do Supremo Tribunal Federal favorável a continuidade das obras), porém numa lógica mais proveitosa que seja a de direcionar o projeto cada vez mais aos interesses da grande maioria do povo brasileiro. O atraso não deve ser concebido como uma bem-aventurança, mas tampouco o desenvolvimento deve ser almejado a qualquer custo.



Kucinski teve a coragem de expor seu ponto de vista num momento em que a opinião pública sensibilizava muita gente com a figura penitente do Bispo e o seu rio, o que insistia em ocupar o noticiário todos os 23 dias de seu jejum. Hoje, em um clima menos tenso, devemos aproximar todas as organizações sociais que divergem do projeto para traçar uma agenda comum de lutas e reivindicações para que a integração do São Francisco sirva aos interesses maiores do povo brasileiro.

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